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Medo e culpa a bordo da Kombi vermelho piscante

Náusea, palpitações, eu ia de cá pra lá e de lá pra cá, cambaleando dentro da Kombi modernizada que abrigava os aparelhos necessários à manutenção imediata da vida. Caramba, manutenção imediata da vida. Tensão. Nada de pânico ou delírio. Apenas tensão, aquele músculo das costas realmente endureceu. E náusea, a rapidez das curvas.

Um homem baleado. Por que? Essa pergunta ia além do necessário contido na palavra “imediato”. Informações irrelevantes nesse contexto. Eu senti a bala com o dedo e o examinei enquanto a enfermeira furava suas veias com uma agulha da grossura de uma antena de rádio. Poxa vida, andar pelas ruas, ser baleado. A polícia não queria nem saber, ia atrás de quem o baleou para balear eles também, que, por sua vez, iriam balear os policiais logo depois, que baleariam…tudo muito racional, extremamente planejado e com um objetivo certeiro. Deixar tudo como está. Fodido. Um círculo vicioso diriam os acadêmicos.

Medo e culpa. Era isso. Viver é penoso, é muito triste. E não adianta chorar, quando dobrar a esquina, sair do seu quarteirão, ninguém sabe como agir. Não vale a pena chorar, ou mesmo chutar o ar em tom de desespero. Talvez dormir trancafiado em uma cela seja mais seguro.

Eu peguei na mão do meu amigo baleado. Ele tentou fugir e tomou um tiro nas costas. Eu também já fugi tantas vezes na vida, sempre corri, quis que meu brinquedo fosse só meu, afinal, assim tinha aprendido com os doutores do saber mundano. Não te condenaria se você fugisse agora meu amigo, fechasse os olhos e pedisse pra que eu desligasse o oxigênio. Poxa, me deixa ir contigo. To the other side. Se houvesse realmente escolha, se o peso da condenação não fosse tão grande, se existisse o perdão eterno.

Calma, tá tudo certo. Vem comigo, rapaz. Era a minha vez. Meu amigo ficava por lá, ia dar tudo certo com ele. Já comigo…horas batendo a caligrafia na máquina emocional. Peço uma fanta uva na conveniência e tento esboçar um sorriso falso pra garota atrás do balcão – ela vai ter que passar a noite trabalhando, o mínimo que eu posso fazer é esboçar um sorriso falso. – Saio meio de lado, os lábios secos e rachados das noites de sereno na rua. Ela me sorri e eu tento balbuciar um boa noite.

Tensão e náusea. Medo e culpa. Grandes são os caras que conseguem não sentir isso e ir cobrindo as falhas do monstro que governa as metrópoles, os caras que olham pra frente e tentam não pensar muito, e riem à toa de uma careta engraçada, de uma piada suja, e seguem o conselho do mestre, “keep breathing”.

(Marcus Vinícius Marcelini)

A fuga da lula


“A gente pode dar uma volta no quarteirão nessas noites que a TV não satisfaz e a cama tá vazia.” (Saco de Ratos)

I

– Eu tenho um plano.
– Qual?
– A gente sai na sexta e volta antes do natal.
Esse era o plano, sair na sexta e voltar antes do natal, tinha algo a ver com as montanhas, ou perto delas, algo parecido com isso, resgatar o velho espírito mineiro que estava se confundindo com o sentimento da confluência plana, sonsa, flat.
Será que alguém realmente sabe onde está indo? Caminhando sobre os trilhos de um andaime capenga tentando não olhar para baixo. Será? Pegamos a primeira estrada que estava à frente, alguma via expressa com nome estranho de um figurão político.
Talvez ficássemos na casa de um tio. Que tio? Ou talvez no apartamento de um amigo precisando compartilhar problemas e perigos. Na mala, um violão, uma escaleta, a velha barraca e uma garrafa do mais puro melagrião. Pode ser que tudo tivesse resolvido, mas provavelmente era só o começo de uma viagem, uma intuspecção na insanidade da alma de seres humanos como nós, perdidos e extremamente entediados com qualquer tipo de imagem repetida na retina.
– Dá uma volta no quarteirão, meu velho.
Era um quadrado legal, no meio das montanhas, ao lado da metrópole. Tinha um quarteirão por lá, diziam que era por ali que acontecia o amor e, não fosse a segunda volta da montanha, eu juraria que havia mar em algum lugar. Steven estava por lá, Sthendal também, assim como muitos outros que se encontram nas curvas das estradas e esperam a mudança do quarteirão de lugar, mas na verdade era ali mesmo que se encontravam, assim como a mala reluzente e a música que tomava cores pelo ar.
Impressionado com a movimentação eu tentei então dar a volta no quarteirão pra sentir o amor, pra me sentir mais em casa, talvez esse amor (e toda a fumaça) curasse o meu irmão que caminhava logo atrás de mim se contorcendo com as dores de um vírus que tentava coabitar seu corpo. Fraco e doente ele caminhava comigo mostrando a força que têm os soldados do tempo, os herdeiros da estrada.
– Eu estive por lá, Europa, amor. Eu estive por lá agora que a onda quebrou. O Dubstep é uma compilação da geração que toma o rumo das grandes navegações, o Dubstep é a onda que quebra junto com o sentimento das gravações por e-mail.
– Eu estive por aqui. Dormi em baixo de pontes e acompanhei caminhadas, acampei em praças, fui reprimido, comprei fumo de corda dos caras da rua, o Dubstep, o rap, o blues. Tá tudo junto.
Não havia como ser diferente. A reunião aconteceu na beira da estrada já que quem não tem raízes desliza seu caule pegajoso pelo outro lado da rua.
Como muitos outros que chegaram e como muitos outros que partiram, eu acabei também chegando e partindo, caindo em camas de hospitais, correndo pela estrada em busca de medicamentos esquecidos. Tive, afinal, que voltar. Mas a volta nada mais é do que um preparo para a nova partida. Creio que nessa carta desesperada já esteja submersa na lágrima da chegada o fogo da partida. Assim que recobrarmos nossa consciência, assim que o corpo se recuperar com a trégua merecida, novamente deslizaremos nosso caule pegajoso. Buscamos, de uma forma ou de outra, as águas calmas de um porto, as propriedades cicatrizantes da água do Atlântico para tentar fechar esse buraco que nem eu mesmo sei mais onde se escondeu. Ele se faz sentir toda noite e espero que doa assim como tem mesmo que doer, mas que, como o barco deixa o cais, ele também se vá e não volte mais.

Estúdio do I love Bubble.

II

Quando eu voltei, enfim, lá estava ela a me esperar. Não que necessariamente já nos conhecêssemos, mas de alguma forma os lábios tomaram a cor da noite e disseram o meu nome enquanto eu tentava colocar um blues pra tocar na rádio da TV a cabo.
Ana Tula bebia vodka, eu bebia água. Era difícil acreditar, mas o teatro faz dessas coisas com as pessoas. Eu pensei mesmo por um tempo que realmente era o teatro, depois comecei a pensar que pudesse ser o sexo ou a noite que sempre atravessava levando um pedaço meu. Era isso que eu precisava cicatrizar com a água do mar, os pedaços que a noite me arrancava ao atravessar sem trégua um quarto de motel.
Eu sabia muito bem que ela queria e tentava evitá-la, até que se tornou quase impossível, em algum ponto, que suas pernas cruzassem o salão despercebidas. Quando dei por mim aquelas pernas já se misturavam às minhas e tudo o que eu pensava era levá-la ao banheiro para que a privacidade se entrelaçasse à embriaguez e então pudéssemos nos encontrar. Apesar de sempre desencontrado nos telhados alheios, eram pernas sensacionais.
O banheiro foi um erro. Quase sempre é. O carro é uma escolha plausível, mas pode haver engano demais e o físico não conseguir conter a barreira do espaço. Dado que tentamos ambos e a combustão dos corpos estreitava o vazio que havia entre nós, procuramos uma cama escondida em algum canto das ruelas da cidade mineira. Quando antes eu disse que voltara pra casa, eu quis dizer que voltava para o velho terreno que fui criado oscilando entre minha real casa e todos os arredores do que considero familiar. Sim, o banheiro foi um erro.
Adormecemos em uma cama. Lençóis brancos desvirginaram a pureza. Não, aqueles lençóis brancos nada tinham de pureza. Muito menos ela. Só havia pureza no frio que entrava pela janela (o frio que sempre entra pela janela) e no sol que nascia enquanto eu voltava para casa. Sim, eu voltava para casa sozinho, o sol se levantando na linha montanhosa do horizonte. Havia dormido pouco, mas a possibilidade de um café quente e um disco do Muddy me fariam agüentar mais algumas horas até chegar lá. Dirigindo e escrevendo eu tateava curvas da estrada em busca daquele lugarzinho que George nos prometera. É claro, Fred Sun Walk estatelava sua guitarra no porta luvas do carro, tente entender, tudo ficaria mais simples se eu chegasse mais rápido por lá ou até se conseguisse não me perder em uma das curvas no caminho, mas acontece que nada é tão simples.

III

É difícil falar assim sobre lulas e obviamente também é difícil falar sobre as mulheres. O que acontece é que Ana não era de toda má, o grande problema era não saber sobre a fuga da lula e todas as implicações anatômicas e filosóficas disso e, de qualquer maneira, sobre a metade que eu mais gostava da minha pinta, arrancada num só golpe. Ela não sabia nada sobre isso, nem sobre os segredos que guardam as escadas das igrejas pela madrugada com garrafas vazias e violões quebrados. O que faltava pra ela e pra muitas outras é essa sabedoria estranha que guardam as curvas das estradas e os cantos das folhas cortadas nas trilhas das praias que na verdade são as mesmas trilhas incas de Machu Picchu que ligam o Peru a São Tomé das Letras. Dessas trilhas que fazem a cabeça de três amigos com uma mochila e um amor estranho pela estrada. Essa fuga que ela nunca entendeu muito bem. Fuga que não é, na verdade, a mesma que a fuga da lula, mas ambas podem ter uma grande semelhança empírica quando bem feitas.
– Pra que essa mochila, tá indo embora?
– To saindo fora, baby, to chutando a bola.
Pensei no ponto alto da nossa relação e nas piores noites em que a carreguei, bêbada, subindo a escada. Tudo era muito difícil e era inevitável que fosse assim, não existem escolhas. O amor me pegava de surpresa, eu nem tinha acabado com a bebida no copo, às vezes no meio de uma refeição ele vinha e acabava com as minhas noites de sono bom. Fechando a porta atrás de mim, deixei ela e suas calcinhas, o vento frio entrando pelas frestas da janela.
Nunca soube dançar e, talvez por isso, caí em um forró com Stivie Ray Voughan tocando guitarra. Era ali que os nativos daquela ilha estranha se encontravam para tomar misturas afrodisíacas e baforar latas de loló. Sem saber muito o que fazer, encostei no balcão. Um balcão pode salvar muitas noites de um homem, um balcão pode estragar muitas noites de um homem.
– Vamos dançar. – Disse-me virando os olhos e se misturando às pedras restauradas da rua.
– Eu não sei dançar. Mas se você quiser a gente pode sentar e conversar, não que eu seja bom nisso também.
Meus amigos entraram, eram três, incendiando telhados e bebendo vinho barato. Caímos na noite de forrós e reggaes em esquinas tortas (havia muitas esquinas iguais, barcos e veleiros, qualquer um pode ficar perdido nas esquinas de cidades litorâneas coloniais, ruas iguais as de São Luís do Maranhão ou Paraty, difícil dizer ao certo onde estávamos).
Acordamos numa praia em que não havia como se chegar de carro (disse-me um caroneiro que morava lá há cinco anos). O que nos deixava apenas uma questão, ou havíamos pegado a trilha de três horas no meio da madrugada a pé, ou havíamos chegado de barco, não explicando o fato das mulheres lindas e, é claro (não há como fugir), forró e reggae. Tive a vaga idéia de que atravessamos a madrugada como Neal Cassady contando os trilhos do trem no frio cortante. Nós, ao contrário de Cassady, acordamos. Sempre se corre o risco de acordar e talvez seja esse o risco da imortalidade da alma dos viajantes desencontrados desenhando nas linhas do ar o significado do ser livre.
– Onde foi parar o vinho? Sussurrou um dos meus amigos.
– Vinho?
– É, o vinho.
Será que ele está falando comigo ou com aquele hippie? Eu não havia visto vinho nenhum. Deitei mais uma vez na areia da praia e adormeci, rezando pra que quando eu acordasse algo fizesse algum sentido, pra que eu pudesse entender pra onde ir e, principalmente, pra que eu não precisasse nunca mais voltar pra casa. Mas nem tudo é como a gente pede em orações pra Iemanjá. Acordei com uma dreadlocks me olhando assustada, pupilas dilatadas e respiração intensa.
– O que foi garota?
– Devolve o meu vinho.
– Eu já disse que não tenho nenhum vinho.
Melhor seria se eu desse a ela o vinho e falasse algumas palavras bonitas sobre as estrelas que estavam agora nascendo no horizonte escuro. Mas acontece que eu não tinha nenhum vinho e as estrelas já viraram clichês da madrugada. Só me perguntava onde estariam perdidos os meus amigos, cambaleando pela areia fofa da praia que, poderia ser Maresias não fosse o difícil acesso por carro, diziam que ali era um paraíso hippie. Muitas vezes já ouvi falar em paraísos hippies e nenhum deles realmente me fez a cabeça, mas essa praia parecia algo mais.
Com os meus amigos sumidos tudo o que eu podia fazer era comprar um vinho pra que então, quando me indagassem sobre tal, eu tê-lo em mãos.
– Legal ficou pra trás. – Disse-me Pior, um dos meus amigos que estava perdido.
Se Legal ficou então teríamos que voltar.
O que eu sempre temi foi ter que voltar, mas deixar um grande amigo na mão nunca foi meu forte. Talvez eu já tivesse visto isso acontecer assim que fechei a porta (com apenas meia pinta nas costas) e tentei esquecer ela e suas calcinhas de algodão, mas agora que tudo já havia acontecido era muito difícil dizer se a força do acontecimento estava me remetendo a falsas memórias ou se eu realmente era um visionário e pressenti tudo (o forró, os barcos, os amigos, o escorregão pelas ruas de pedra tombadas do patrimônio histórico, os gringos, os dreadlocks pelo caminho e no final, o paraíso encontrado tendo que ser deixado pela força da camaradagem). Era isso, pra mim não havia mais garotas em praias desertas e paradisíacas, teria que voltar pra casa e uma vez de volta seria muito difícil cair na estrada novamente.
– Não deixe de me dizer sobre isso, sobre as estrelas e os clichês da noite, não deixe de comprar o vinho e me acompanhar no violão. Não.
Como era estranho estar de volta, passando assim dois dias dormindo, dois dias sem sentir o gosto da comida, eu queria voltar, “we have to go back”. Alguém bate na porta. Alguém diz que quer o pior de mim. Eu quero fugir, mas se não sabe fazer, parou, vamos começar de novo.
É difícil falar, assim, sobre lulas e, obviamente, também é difícil falar sobre mulheres. Eu encontrei uma vez uma delas que entendia as indagações filosóficas e também sabia sobre a fuga da lula e suas implicações anatômicas, mas acontece que eu tive que voltar pra casa e comprar arroz, feijão, atum enlatado e também uma comida para os peixes, tive que pagar as contas de água, luz e tentar ligar o rádio naquela velha estação que toca música sinfônica. Eu tive que voltar pra casa e tentar arrumar algum dinheiro, algum dinheiro pra voltar praquela praia que, eu sabia, ainda guardaria todas as garotas com cabelos cacheados e todo o vinho desencontrado em garrafas viajando com mensagens de amor pelas ondas até o outro lado do atlântico. E seria inevitável, como sempre é.

Nossa casa de verão. João e eu, foto tirada pelo Mateus Marcelini.

IV
Se ficasse muito tempo parado o sol faria um furo no meu rosto e a minha cabeça faria um furo no colchão dos dias seguidos dormindo prostrado sobre o lençol já rasgado, eu sabia muito bem disso.
A viagem foi horrível, mas até que foi bom voltar pra Ilhabela. Poxa vida, aquele lugar já havia me dado caldos de perrengues e os mosquitos ainda estavam por lá a importunar-nos. Caí meio que de pára-quedas num blues que na verdade era um rock.
Por favor, não distorçam o nome do blues, de tudo que já destruíram e de tudo que ainda vão destruir, deixem o blues em paz. Porém, de qualquer maneira, havia as estudantes de cinema e as mulheres de cabelos raspados dos lados e a cerveja mais gelada do continente, ou melhor, de toda a ilha.
Algo estava acontecendo e quando percebi parecia ser tarde demais pra ser controlado. Eu estava acordando periodicamente depois do meio dia, talvez pelas noites atravessadas com a lua refletida no mar. Novamente me encontrava sozinho. Decidi então cair na rua. Estendi o dedo e peguei uma carona pela estreita estrada da ilha. Um casal e sua filhinha de sete anos me colocaram pra dentro do carro.
– Olá rapaz.
– Oi, tudo certo? Pode me deixar na praia da Feiticeira?
– Tudo bem. O que você faz por aqui?
– Estou procurando um emprego.
– Ah é! E o que você faz?
– Eu sou escritor.
– Que legal! Olha filha, um escritor. Você tem algum livro publicado?
– Sim, chama-se “Não alimente o monstro cego e capenga”.
– É mesmo, ele fala do que?
– Ele conta a história de um homem que tinha diabetes e por isso ficara meio cego e coxo, ele também bebia muito e acabava xingando as pessoas e arrumando confusão, até que se apaixona por uma prostituta e começa a ver algum sentido na vida, só que um padre que era terrivelmente apaixonado pela prostituta acaba matando os dois e dando um tiro no próprio ouvido.
– Meu deus que horror. Quantos anos você tem?
– Vinte e um.
– E quantos tinha quando escreveu essa história?
– Uns dezoito. Tinha acabado de perder minha namorada e grande parte da inspiração se fora com ela. É aqui que fico, praia da feiticeira.
Bem, eu nunca havia sido muito bom naquilo, jogar conversa fora, e tinha a impressão que dessa vez não havia sido diferente.
A praia da Feiticeira era bem assim, um nada, um belo e gostoso nada. Dei um grande mergulho no mar e olhei pra areia. Ninguém. Era até legal. É claro que eu gostava muito do centro também com os bares e o blues, mas um fim de tarde ali poderia ser muito bom. Sozinho. Voltei caminhando por diversas outras pequenas praias não tão vazias, decidi não tentar a carona, andar a pé poderia me fazer algum bem. Lembrei do meu grande amigo Valder com sua carteira de motorista vencida dando cavalinho de pau nas esquias e de todas as garotas lindas de Belo Horizonte e dos portos e ilhas com garrafas de vinho.
Lembrei dela. Ela que conheci em Guaxupé, no meio dos morros ondulando no céu, ela que pedia cigarro pros travestis e bebia com as putas nas espeluncas baratas, o taco de sinuca, a garrafa de vodka. Poderia ser verdade que algo grande me esperava em algum lugar do futuro se eu voltasse pra casa pegando um bom ônibus. O sol já partia na linha com as ondas tentando nos enganar, refletindo-se oblíquo pela água turva do mar. “Que areia branca”, pensei, deitado ali nada parecia poder me atingir, deitado ali meus olhos se fechavam e eu rezava um terço estranho a Iemanjá pra que só acordasse no verão que vem, ou até no depois dele. Era difícil dizer o que aconteceria em seguida.

(Marcus Vinícius Marcelini)

2011

Um ano não passa,
um ano se prolonga
como as unhas não aparadas
e leva tudo de bom que eu tinha
leva tudo que me salvava
nas noites insones,
eu, zumbi da madrugada,
cheirando os paralelepípedos soltos da estrada,
um ano que não me trouxe nada
que me tira o sopro da vida
e me faz beber sozinho,
que passa de vagar
como um rastro falho no caminho,
um bar sem leis,
eu peço três, pra viagem.
Mostre-me o caminho de casa,
três dias e trezentas noites de falta.
Cheire o rastro da solidão,
siga o caminho de casa.

(Marcus Vinícius Marcelini)

Dragão de jardim

Eu vou ler todos os livros que nunca li
& fazer anotações irrelevantes no meu caderno
& tentar entender as mentes atormentadas
dos escritores de balcão
& vou ficar em casa um bom tempo
com um Hemingway na mão
& minha própria mente
também atormentada
vai sofrer mais que meu corpo atrofiado
& eu vou esculpir um busto arrojado
esculpir um busto
de Florbela Espanca
& dormir sem perceber
com o controle da televisão
mudando de canal com ela desligada
& vou colocar um dragão no jardim
& espalhar flores mortas pela casa
só pra ver você entrar
se esbarrando nos fantasmas
só pra ver você entrar
flores mortas pela casa.

(Marcus Vinícius Marcelini)

foto de Fernando Biagioni

Os ventos fazem curvas à noite

.

Os garçons se afundam na noite e as pessoas passam na frente dos carros. luzes altas na estrada. alguém pisa mais fundo. ter a coragem do rapaz que pula na frente dos caminhões e estilhaça seus miolos e da mulher que aperta o acelerador contra as pedras, os pastéis na feira podem dizer muita coisa. a tatuagem vista nas costas desnudas, o sol nascendo num quarto de motel.

As vezes tento colocar um blues, mas o sol insiste em aparecer. casa é de onde eu fujo, a rua talvez me traga algo novo. Os garçons se afundam na noite com suas mulheres tristes e seus bebês chorando em casa e seus cigarros queimando na esquina do bar, alguém sempre pisa mais fundo no meio da noite, alguma sobra de sopa fria pra levar embora e os garçons continuam pela noite, com seus cigarros paraguaios e o sorriso de quem veio de muito longe, eu dobro uma esquina e tento dizer alguma coisa que faça sentido, mas acontece que os ventos têm trazido uma fumaça estranha consigo e transformado minha cabeça em algo mais,

os ventos têm entortado os lençóis brancos

e têm entorpecido os moinhos

e têm feito curvas nas esquinas

que insisto em dobrar.

(Marcus Vinícius Marcelini)


no parking, Fernando Biagioni

O acampamento de primavera – Acampa Sampa

O que é São Paulo senão mais uma capital suja do terceiro mundo que já me roubou muitas namoradas? Um campo de basebol que arremessa as bolas sempre pra fora. Eu amo ela. E é o amor que está atravessando a madrugada nesse banco de ônibus.

No meio da guerra, a paz. O centro de São Paulo, as vísceras da besta. Os punks se remoendo. Johni morto. Neonazi com armas. Mas o acampamento continua. Há oito dias, desde o dia 15 de outubro ou 15-O, o novo quilombo foi erguido em baixo do viaduto do chá. Vale do Anhangabaú. Em frente a uma enorme bandeira nacional, o acampamento de primavera clama a paz. Uma primavera estranha. Uma paz estranha.

“Hoje é dia de festa” grita alguém no megafone. Mas a festa é treta. Hoje é dia 22 de outubro, ou, melhor dizendo, hoje é sábado. E as grades estão sendo arrancadas, as barracas sendo levantadas e os megafones… bem, você sabe sobre os megafones, passando de mão em mão. Um professor da USP veio dar uma aula aqui hoje, ontem veio um da PUC, tem uns caras com violão, bikes, moradores de rua, moleques novos, garotas lindas. Tomando decisões, erguendo cartazes em letras garrafais, resolvendo as diferenças e se amando de um jeito bom, é assim que a resistência continua.

Isso tudo tem a ver. Chama-se querer viver ao invés de apenas sobreviver. Coisa difícil para os 99%. E aqui no acampamento tudo continua, ele tem quase uma vida própria, e as idéias vão crescendo, tomando forma, uma cozinha, uma biblioteca, mesas, cadeiras, um campinho de futebol, um gerador e, obviamente, barracas, muitas barracas.

Eu atravessei a madrugada por causa de um amor. Torto e estranho, mas um amor. Quando cheguei por aqui, fui ver o que estava acontecendo. E melhor do que ver o que está acontecendo, é ver que está acontecendo. A impressão que fica é um Dejavú, de que tudo isso já aconteceu, mas que agora os pontinhos estão se fincando em todo o mapa e colorindo todo o planeta. Eu atravessei a madrugada por causa de um amor e acabei deitado sob o sol, escrevendo palavras desconexas. Porque sentir é mais que explicar, e se tem algo que se perpetua nesse sol, nessas palavras, nos gritos do megafone pelo acampamento, é o sentir. O amor.

#Para saber mais sobre o movimento:

– manifesto: http://15osp.org/nosso-manifesto/

– site official: http://15osp.org/

– twitter: https://twitter.com/#!/AcampaSampa

– facebook: http://www.facebook.com/pages/acampasampa/207112696021793

– livestream: http://www.livestream.com/anonymousbr


 O #AcamapaSampa faz parte de uma rede mundial que reivindica mudanças estruturais no modelo de democracia representativa, por entender não só que os governantes não têm os mesmos interesses do povo e que, portanto, não nos representam, como que o próprio modelo representativo do estado funciona de modo que uma minoria decide os rumos de toda a população. Trata-se de um grito de basta ao sistema capitalista. Um grito que, por motivos óbvios, está sendo abafado pela grande mídia. O sentimento geral é de indignação, a corrupção, o novo código florestal, a usina de Belo Monte. No acampamento as decisões são tomadas por consenso, decidindo o futuro do movimento e do Brasil. Pacifico, anticapitalista e horizontal.
Texto publicado também no http://www.ilovebubble.com

(Marcus Vinícius Marcelini)

Depois de quatro anos

Tinha esse cara,

diferente,

poesias,

peças descabidas

pra quem tinha que saber demais o que queria ser na vida,

tinha esse cara

que não cabia em si mesmo,

que leu meus poemas

e me olhava como se fosse meu primeiro amigo

e me chamava de pelo segundo nome,

esse cara não cabia em si,

andava pela esquerda

e não pegava o elevador

e como só os grandes

sabia esconder bem sua dor,

dava abraços apertados

e sorria meio de lado,

esse cara,

falava sobre humanidade,

como só os grandes.

Ele sabia que felicidade

é só um negócio que inventaram

pra vender produtos no intervalo das tele-novelas,

mas mesmo assim sorria

à trilha sonora de gritos incaláveis

nos corredores branco e pretos,

enquanto alguém abria uma lata de cerveja

no fundo de um bar com os headphones ligados,

morphine ecoando.

 

The wonderful world,

tosse,

a vida que podia ter sido e que não foi,

blackbirds,

dona Morte sempre implacável,

o beijo final,

o sorriso

e eu que não choro

me desfiz num rio,

num mar de alma,

Djalma.

 

(Marcus Vinícius Marcelini)

Te mataré Ramirez blues

Esmaltes carcomidos,
all star´s surrados,
nádegas na medida.
Pero si, pero no.
A noite me pega
na mesa do bar,
luzes amarelas,
garrafas vazias por todas as paredes
e um bilhete de amor
preso sob o vidro.
Nove meses de amor,
dizia o bilhete,
enquanto alguém colocava
um Cream
na jukebox,
nove meses de felicidade, dizia a chica.
Ah, las chicas.
Ah, as argentinas,
bueno,
foi pouco,
esmaltes carcomidos,
all star´s surrados,
nádegas na medida
e a tinta preta
e o cabelo frizz
e o batom vermelho,
posições políticas,
esperanças de uma nação.
Eu tenho esperança nas meninas de preto
com fios emaranhados na cabeça
e um olhar triste meia face.
O dia que amanhece
ao som do tiro de um escapamento,
um blues.
Te mataré.
Puerto Madero blues.

 
Buenos Aires, 30 de julho 2011.

(Marcus Vinícius Marcelini)

 

an? os?

É sempre algo com a coisa da bebida,
é sempre algo com a coisa da mulher amada,
sempre fugindo.
Hoje o poema é curto
assim como os anos que se passaram,
experiências,
o que devo é só ao que temo,
perder os amigos,
ódio das mulheres,
a garrafa no fim,
o Zé Dú sem nenhum Gim.

Eu devo só ao tempo.

(Marcus Vinícius Marcelini)  Guaranésia-MG, 2011.

Último trago

Fixe-se no transe, no trespassar da matéria, quando você perceber ela já passou, quando passar traga algumas Budweiser’s com você, traga o Afonso, o Pessa, o Dú e alguma daquelas garotas que tanto apreciamos (perdidas em cantos municipais). Melhor, nem passe aqui, passo livre, mundo. Me livre no quebrar de uma noite mais ou menos, diga que o bar tá aberto, a sinuca tá livre e a zona é perto.

Fixe-se em não se fixar muito, é só mais uma brincadeira, um jogo do cosmos, um efeito passageiro de alguma coisa que jogaram na bebida, nada muito forte. Um DJ discoteando num cofee shop meio desabitado, uma quebrada meio estranha, som novo, é lounge? sempre é lounge.

Transcender sem mochilas, bagagem sempre foi bobagem, – bagagem é extracorpórea – me disse um ateu dia desses, ateus em transes budistas, viagens reveladoras da inexistência de algo mais.

Cruzei a copa das árvores, por vezes acelerei, mas sempre na calma. Se for acelerar mantenha-se no reggae (é aí que mora o segredo) e se for bater de leve prefira um blues e um Hoffman, nada de duplas faces, porrada na cara tem que ser no silêncio, escândalos são para os contentes, cuidei das transições bruscas, dos dias acordando sob teias, as teias sob o efeito. Acionistas da bolsa encontram o êxtase místico do tarô, inferno astrológico, Carl Sagan quiromântico, Madame Minn lecionando a teoria das supercordas, alguém puxa fundo para a árvore brônquica o que da árvore-terra saiu, árvore-mãe, pessoas falam sempre sobre as minhas outras garotas, os amigos riscam fósforos, acendem isqueiros, Prometeu andando às cegas pelas minhas faculdades mentais, experiências sensoriais, cores saborosas.

Não leve bagagens, não cometa o erro. Foucault dissecando cadavéricos sociopatas, meu prazer alexandrinesco, magno, incrustações genéticas, bloqueio evolucionário, alocações, de que me vale perder uma cauda e ganhar a ganância, crise de sinônimos evolução-extinção. Bagagens são um erro, bagagem genética, não cometa o erro. Promiscuidade neuronal, isso sim é evolução, Darwin nadando crau, nu, em lagos virgens, ilhas virgens do pacífico, praias virgens do pacífico, virgens virgens do pacífico. Venéreo. Escorbuto tomando conta da tripulação, é a praga, Darwin não matou Deus, por favor advertam-No, ex-virgens sifilíticas do pacífico.

Camões naufragado, trazendo “Os Lusíadas” debaixo do braço, 455 anos, one houndred years, boemia aqui me tens de regresso, advertam-No, não O matamos, nós O amamos.

Ela lança um grito de desespero e me olha no umbigo, bem no fundo do umbigo, essa pinta sempre esteve aí?

Diga a ela que não posso – amor, tente – não posso, bagagens são um erro, eu não faço a redondilha, perdi o amor à glória lusitana, don´t try, textos são confusos, não escreva poesia.

(Marcus Vinícius Marcelini)

'Hell' - Hieronymus Bosh

'Hell' - Hieronymus Bosh

 Seguindo o conselho do  Bernardo Biagioni estou experimentando a horizontalização dos versos, esse em particular foi composto ouvindo ao vivo o line do iLove Bubble numa dessas terças tortas por aí.