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A fuga da lula



“A gente pode dar uma volta no quarteirão nessas noites que a TV não satisfaz e a cama tá vazia.” (Saco de Ratos)

I

– Eu tenho um plano.
– Qual?
– A gente sai na sexta e volta antes do natal.
Esse era o plano, sair na sexta e voltar antes do natal, tinha algo a ver com as montanhas, ou perto delas, algo parecido com isso, resgatar o velho espírito mineiro que estava se confundindo com o sentimento da confluência plana, sonsa, flat.
Será que alguém realmente sabe onde está indo? Caminhando sobre os trilhos de um andaime capenga tentando não olhar para baixo. Será? Pegamos a primeira estrada que estava à frente, alguma via expressa com nome estranho de um figurão político.
Talvez ficássemos na casa de um tio. Que tio? Ou talvez no apartamento de um amigo precisando compartilhar problemas e perigos. Na mala, um violão, uma escaleta, a velha barraca e uma garrafa do mais puro melagrião. Pode ser que tudo tivesse resolvido, mas provavelmente era só o começo de uma viagem, uma intuspecção na insanidade da alma de seres humanos como nós, perdidos e extremamente entediados com qualquer tipo de imagem repetida na retina.
– Dá uma volta no quarteirão, meu velho.
Era um quadrado legal, no meio das montanhas, ao lado da metrópole. Tinha um quarteirão por lá, diziam que era por ali que acontecia o amor e, não fosse a segunda volta da montanha, eu juraria que havia mar em algum lugar. Steven estava por lá, Sthendal também, assim como muitos outros que se encontram nas curvas das estradas e esperam a mudança do quarteirão de lugar, mas na verdade era ali mesmo que se encontravam, assim como a mala reluzente e a música que tomava cores pelo ar.
Impressionado com a movimentação eu tentei então dar a volta no quarteirão pra sentir o amor, pra me sentir mais em casa, talvez esse amor (e toda a fumaça) curasse o meu irmão que caminhava logo atrás de mim se contorcendo com as dores de um vírus que tentava coabitar seu corpo. Fraco e doente ele caminhava comigo mostrando a força que têm os soldados do tempo, os herdeiros da estrada.
– Eu estive por lá, Europa, amor. Eu estive por lá agora que a onda quebrou. O Dubstep é uma compilação da geração que toma o rumo das grandes navegações, o Dubstep é a onda que quebra junto com o sentimento das gravações por e-mail.
– Eu estive por aqui. Dormi em baixo de pontes e acompanhei caminhadas, acampei em praças, fui reprimido, comprei fumo de corda dos caras da rua, o Dubstep, o rap, o blues. Tá tudo junto.
Não havia como ser diferente. A reunião aconteceu na beira da estrada já que quem não tem raízes desliza seu caule pegajoso pelo outro lado da rua.
Como muitos outros que chegaram e como muitos outros que partiram, eu acabei também chegando e partindo, caindo em camas de hospitais, correndo pela estrada em busca de medicamentos esquecidos. Tive, afinal, que voltar. Mas a volta nada mais é do que um preparo para a nova partida. Creio que nessa carta desesperada já esteja submersa na lágrima da chegada o fogo da partida. Assim que recobrarmos nossa consciência, assim que o corpo se recuperar com a trégua merecida, novamente deslizaremos nosso caule pegajoso. Buscamos, de uma forma ou de outra, as águas calmas de um porto, as propriedades cicatrizantes da água do Atlântico para tentar fechar esse buraco que nem eu mesmo sei mais onde se escondeu. Ele se faz sentir toda noite e espero que doa assim como tem mesmo que doer, mas que, como o barco deixa o cais, ele também se vá e não volte mais.

Estúdio do I love Bubble.

II

Quando eu voltei, enfim, lá estava ela a me esperar. Não que necessariamente já nos conhecêssemos, mas de alguma forma os lábios tomaram a cor da noite e disseram o meu nome enquanto eu tentava colocar um blues pra tocar na rádio da TV a cabo.
Ana Tula bebia vodka, eu bebia água. Era difícil acreditar, mas o teatro faz dessas coisas com as pessoas. Eu pensei mesmo por um tempo que realmente era o teatro, depois comecei a pensar que pudesse ser o sexo ou a noite que sempre atravessava levando um pedaço meu. Era isso que eu precisava cicatrizar com a água do mar, os pedaços que a noite me arrancava ao atravessar sem trégua um quarto de motel.
Eu sabia muito bem que ela queria e tentava evitá-la, até que se tornou quase impossível, em algum ponto, que suas pernas cruzassem o salão despercebidas. Quando dei por mim aquelas pernas já se misturavam às minhas e tudo o que eu pensava era levá-la ao banheiro para que a privacidade se entrelaçasse à embriaguez e então pudéssemos nos encontrar. Apesar de sempre desencontrado nos telhados alheios, eram pernas sensacionais.
O banheiro foi um erro. Quase sempre é. O carro é uma escolha plausível, mas pode haver engano demais e o físico não conseguir conter a barreira do espaço. Dado que tentamos ambos e a combustão dos corpos estreitava o vazio que havia entre nós, procuramos uma cama escondida em algum canto das ruelas da cidade mineira. Quando antes eu disse que voltara pra casa, eu quis dizer que voltava para o velho terreno que fui criado oscilando entre minha real casa e todos os arredores do que considero familiar. Sim, o banheiro foi um erro.
Adormecemos em uma cama. Lençóis brancos desvirginaram a pureza. Não, aqueles lençóis brancos nada tinham de pureza. Muito menos ela. Só havia pureza no frio que entrava pela janela (o frio que sempre entra pela janela) e no sol que nascia enquanto eu voltava para casa. Sim, eu voltava para casa sozinho, o sol se levantando na linha montanhosa do horizonte. Havia dormido pouco, mas a possibilidade de um café quente e um disco do Muddy me fariam agüentar mais algumas horas até chegar lá. Dirigindo e escrevendo eu tateava curvas da estrada em busca daquele lugarzinho que George nos prometera. É claro, Fred Sun Walk estatelava sua guitarra no porta luvas do carro, tente entender, tudo ficaria mais simples se eu chegasse mais rápido por lá ou até se conseguisse não me perder em uma das curvas no caminho, mas acontece que nada é tão simples.

III

É difícil falar assim sobre lulas e obviamente também é difícil falar sobre as mulheres. O que acontece é que Ana não era de toda má, o grande problema era não saber sobre a fuga da lula e todas as implicações anatômicas e filosóficas disso e, de qualquer maneira, sobre a metade que eu mais gostava da minha pinta, arrancada num só golpe. Ela não sabia nada sobre isso, nem sobre os segredos que guardam as escadas das igrejas pela madrugada com garrafas vazias e violões quebrados. O que faltava pra ela e pra muitas outras é essa sabedoria estranha que guardam as curvas das estradas e os cantos das folhas cortadas nas trilhas das praias que na verdade são as mesmas trilhas incas de Machu Picchu que ligam o Peru a São Tomé das Letras. Dessas trilhas que fazem a cabeça de três amigos com uma mochila e um amor estranho pela estrada. Essa fuga que ela nunca entendeu muito bem. Fuga que não é, na verdade, a mesma que a fuga da lula, mas ambas podem ter uma grande semelhança empírica quando bem feitas.
– Pra que essa mochila, tá indo embora?
– To saindo fora, baby, to chutando a bola.
Pensei no ponto alto da nossa relação e nas piores noites em que a carreguei, bêbada, subindo a escada. Tudo era muito difícil e era inevitável que fosse assim, não existem escolhas. O amor me pegava de surpresa, eu nem tinha acabado com a bebida no copo, às vezes no meio de uma refeição ele vinha e acabava com as minhas noites de sono bom. Fechando a porta atrás de mim, deixei ela e suas calcinhas, o vento frio entrando pelas frestas da janela.
Nunca soube dançar e, talvez por isso, caí em um forró com Stivie Ray Voughan tocando guitarra. Era ali que os nativos daquela ilha estranha se encontravam para tomar misturas afrodisíacas e baforar latas de loló. Sem saber muito o que fazer, encostei no balcão. Um balcão pode salvar muitas noites de um homem, um balcão pode estragar muitas noites de um homem.
– Vamos dançar. – Disse-me virando os olhos e se misturando às pedras restauradas da rua.
– Eu não sei dançar. Mas se você quiser a gente pode sentar e conversar, não que eu seja bom nisso também.
Meus amigos entraram, eram três, incendiando telhados e bebendo vinho barato. Caímos na noite de forrós e reggaes em esquinas tortas (havia muitas esquinas iguais, barcos e veleiros, qualquer um pode ficar perdido nas esquinas de cidades litorâneas coloniais, ruas iguais as de São Luís do Maranhão ou Paraty, difícil dizer ao certo onde estávamos).
Acordamos numa praia em que não havia como se chegar de carro (disse-me um caroneiro que morava lá há cinco anos). O que nos deixava apenas uma questão, ou havíamos pegado a trilha de três horas no meio da madrugada a pé, ou havíamos chegado de barco, não explicando o fato das mulheres lindas e, é claro (não há como fugir), forró e reggae. Tive a vaga idéia de que atravessamos a madrugada como Neal Cassady contando os trilhos do trem no frio cortante. Nós, ao contrário de Cassady, acordamos. Sempre se corre o risco de acordar e talvez seja esse o risco da imortalidade da alma dos viajantes desencontrados desenhando nas linhas do ar o significado do ser livre.
– Onde foi parar o vinho? Sussurrou um dos meus amigos.
– Vinho?
– É, o vinho.
Será que ele está falando comigo ou com aquele hippie? Eu não havia visto vinho nenhum. Deitei mais uma vez na areia da praia e adormeci, rezando pra que quando eu acordasse algo fizesse algum sentido, pra que eu pudesse entender pra onde ir e, principalmente, pra que eu não precisasse nunca mais voltar pra casa. Mas nem tudo é como a gente pede em orações pra Iemanjá. Acordei com uma dreadlocks me olhando assustada, pupilas dilatadas e respiração intensa.
– O que foi garota?
– Devolve o meu vinho.
– Eu já disse que não tenho nenhum vinho.
Melhor seria se eu desse a ela o vinho e falasse algumas palavras bonitas sobre as estrelas que estavam agora nascendo no horizonte escuro. Mas acontece que eu não tinha nenhum vinho e as estrelas já viraram clichês da madrugada. Só me perguntava onde estariam perdidos os meus amigos, cambaleando pela areia fofa da praia que, poderia ser Maresias não fosse o difícil acesso por carro, diziam que ali era um paraíso hippie. Muitas vezes já ouvi falar em paraísos hippies e nenhum deles realmente me fez a cabeça, mas essa praia parecia algo mais.
Com os meus amigos sumidos tudo o que eu podia fazer era comprar um vinho pra que então, quando me indagassem sobre tal, eu tê-lo em mãos.
– Legal ficou pra trás. – Disse-me Pior, um dos meus amigos que estava perdido.
Se Legal ficou então teríamos que voltar.
O que eu sempre temi foi ter que voltar, mas deixar um grande amigo na mão nunca foi meu forte. Talvez eu já tivesse visto isso acontecer assim que fechei a porta (com apenas meia pinta nas costas) e tentei esquecer ela e suas calcinhas de algodão, mas agora que tudo já havia acontecido era muito difícil dizer se a força do acontecimento estava me remetendo a falsas memórias ou se eu realmente era um visionário e pressenti tudo (o forró, os barcos, os amigos, o escorregão pelas ruas de pedra tombadas do patrimônio histórico, os gringos, os dreadlocks pelo caminho e no final, o paraíso encontrado tendo que ser deixado pela força da camaradagem). Era isso, pra mim não havia mais garotas em praias desertas e paradisíacas, teria que voltar pra casa e uma vez de volta seria muito difícil cair na estrada novamente.
– Não deixe de me dizer sobre isso, sobre as estrelas e os clichês da noite, não deixe de comprar o vinho e me acompanhar no violão. Não.
Como era estranho estar de volta, passando assim dois dias dormindo, dois dias sem sentir o gosto da comida, eu queria voltar, “we have to go back”. Alguém bate na porta. Alguém diz que quer o pior de mim. Eu quero fugir, mas se não sabe fazer, parou, vamos começar de novo.
É difícil falar, assim, sobre lulas e, obviamente, também é difícil falar sobre mulheres. Eu encontrei uma vez uma delas que entendia as indagações filosóficas e também sabia sobre a fuga da lula e suas implicações anatômicas, mas acontece que eu tive que voltar pra casa e comprar arroz, feijão, atum enlatado e também uma comida para os peixes, tive que pagar as contas de água, luz e tentar ligar o rádio naquela velha estação que toca música sinfônica. Eu tive que voltar pra casa e tentar arrumar algum dinheiro, algum dinheiro pra voltar praquela praia que, eu sabia, ainda guardaria todas as garotas com cabelos cacheados e todo o vinho desencontrado em garrafas viajando com mensagens de amor pelas ondas até o outro lado do atlântico. E seria inevitável, como sempre é.

Nossa casa de verão. João e eu, foto tirada pelo Mateus Marcelini.

IV
Se ficasse muito tempo parado o sol faria um furo no meu rosto e a minha cabeça faria um furo no colchão dos dias seguidos dormindo prostrado sobre o lençol já rasgado, eu sabia muito bem disso.
A viagem foi horrível, mas até que foi bom voltar pra Ilhabela. Poxa vida, aquele lugar já havia me dado caldos de perrengues e os mosquitos ainda estavam por lá a importunar-nos. Caí meio que de pára-quedas num blues que na verdade era um rock.
Por favor, não distorçam o nome do blues, de tudo que já destruíram e de tudo que ainda vão destruir, deixem o blues em paz. Porém, de qualquer maneira, havia as estudantes de cinema e as mulheres de cabelos raspados dos lados e a cerveja mais gelada do continente, ou melhor, de toda a ilha.
Algo estava acontecendo e quando percebi parecia ser tarde demais pra ser controlado. Eu estava acordando periodicamente depois do meio dia, talvez pelas noites atravessadas com a lua refletida no mar. Novamente me encontrava sozinho. Decidi então cair na rua. Estendi o dedo e peguei uma carona pela estreita estrada da ilha. Um casal e sua filhinha de sete anos me colocaram pra dentro do carro.
– Olá rapaz.
– Oi, tudo certo? Pode me deixar na praia da Feiticeira?
– Tudo bem. O que você faz por aqui?
– Estou procurando um emprego.
– Ah é! E o que você faz?
– Eu sou escritor.
– Que legal! Olha filha, um escritor. Você tem algum livro publicado?
– Sim, chama-se “Não alimente o monstro cego e capenga”.
– É mesmo, ele fala do que?
– Ele conta a história de um homem que tinha diabetes e por isso ficara meio cego e coxo, ele também bebia muito e acabava xingando as pessoas e arrumando confusão, até que se apaixona por uma prostituta e começa a ver algum sentido na vida, só que um padre que era terrivelmente apaixonado pela prostituta acaba matando os dois e dando um tiro no próprio ouvido.
– Meu deus que horror. Quantos anos você tem?
– Vinte e um.
– E quantos tinha quando escreveu essa história?
– Uns dezoito. Tinha acabado de perder minha namorada e grande parte da inspiração se fora com ela. É aqui que fico, praia da feiticeira.
Bem, eu nunca havia sido muito bom naquilo, jogar conversa fora, e tinha a impressão que dessa vez não havia sido diferente.
A praia da Feiticeira era bem assim, um nada, um belo e gostoso nada. Dei um grande mergulho no mar e olhei pra areia. Ninguém. Era até legal. É claro que eu gostava muito do centro também com os bares e o blues, mas um fim de tarde ali poderia ser muito bom. Sozinho. Voltei caminhando por diversas outras pequenas praias não tão vazias, decidi não tentar a carona, andar a pé poderia me fazer algum bem. Lembrei do meu grande amigo Valder com sua carteira de motorista vencida dando cavalinho de pau nas esquias e de todas as garotas lindas de Belo Horizonte e dos portos e ilhas com garrafas de vinho.
Lembrei dela. Ela que conheci em Guaxupé, no meio dos morros ondulando no céu, ela que pedia cigarro pros travestis e bebia com as putas nas espeluncas baratas, o taco de sinuca, a garrafa de vodka. Poderia ser verdade que algo grande me esperava em algum lugar do futuro se eu voltasse pra casa pegando um bom ônibus. O sol já partia na linha com as ondas tentando nos enganar, refletindo-se oblíquo pela água turva do mar. “Que areia branca”, pensei, deitado ali nada parecia poder me atingir, deitado ali meus olhos se fechavam e eu rezava um terço estranho a Iemanjá pra que só acordasse no verão que vem, ou até no depois dele. Era difícil dizer o que aconteceria em seguida.

(Marcus Vinícius Marcelini)

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