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eu quero saber o que você sente

eu quero saber o que você sente, o que pensa sobre nós, já que estamos juntos agora há três anos… ou serão três horas?

três? não sei… não me lembro, mas não entendo…

o que?

não sei… (eloquente) porque quebrar este silêncio tão palpável e tentar construir algum sentido abstrato na concretude do momento que nos envolve… (quebrando a eloquência) não sei se estou sendo coerente, se algo do que digo é compreensível. naquela noite, em que nos conhecemos, quer dizer, nesta mesma noite, quando você se aproximou, e nos beijamos, nada parecia fazer sentido. você me entende? me parece natural ir em busca do que não faz sentido, ou talvez eu esteja fugindo dele, do sentido. e que sentido há em buscar o beijo se não há desejo, se não há tesão, se não há sublimação no beijar? que sentido há em viajar se não há saudade? a vida não possui sentido. pelo menos a minha, de algum tempo pra cá, não possui sentido algum. como um castelo que se desmancha por ser feito de palavras que só possuem um significado porque ele foi criado para dar sentido à existência do significante. como a criança que descobre o relógio de pulso no braço do papai-noel, e de repente alguns pêlos negros por baixo da barba falsa… parece que tudo começa aí… depois, muitos anos depois, fica fácil compreender porque aquela criança estava batendo na porta da casa da sua família em plena noite de natal, e depois de ser acolhida, recebida, presenteada com o que havia de melhor e mais inútil; depois ela tinha que ir embora, e não podia sair sem levar aquele celular que estava ali de bobeira e cabia no bolso. não é que você esteja enfeitando as coisas, mas me parece que faz muito mais sentido deixar as coisas, os fatos, os gestos sem a moldura das palavras… o raciocínio é confuso, e é sempre preciso reconstruir de um outro modo, pra deixas as coisas mais claras, mas de uma claridade que ofusca.

quando se está à beira da morte, qualquer sentido é inalcançável.

eu vi o ninho de ratos ser sugado pelo trator na colheita de trigo. eu vi a plantação de cana em chamas, e a chuva de fuligem cair sobre a cidade, enquanto uma serpente tenta fugir pela longa estrada de asfalto; os lagartos em desespero; os cachorros uivando… eu olhei nos olhos do camarada que tacou fogo na casa da mulher, e ele me agradeceu quase em prantos enquanto eu me culpava por tudo, e isso não é ilusão, a culpa me vinha de dentro desde a barriga de minha mãe, desde o escroto de meu pai. eu sei que não temos culpa de nascer, mas nascemos para sentir a culpa de existir. nem sei porque estou te dizendo tudo isto, transformando essa conversa num monólogo sem cabimento, mas é algo que sinto, se te satisfaz, é parte do que penso, mas uma parte de um todo muito distante, muito informe, de algo que em sua origem era apenas música e imagens que não consigo reproduzir.

quando nos conhecemos, estava escuro, ao menos esta é a imagem que restou, havia uma fogueira e algumas pessoas que liam poesias e cantavam seus sonhos. havia um céu enorme, muito concreto, e algumas árvores ao redor. um lugar abandonado, quase em ruínas. eu estava sozinho. era como estava. eu pensava na harmonia e no caos. no momento em que nos beijamos havia muitas cores escuras, muitos ruídos, uma confusão de sensações que infelizmente não se repetem, e nem podem ser explicadas. havia um calafrio. havia uma mistura de harmonia e caos que oscilava em pêndulo. havia a completa ausência de sentido por um longo tempo. no momento em que transamos, havia o tesão. eu não sabia o que estava fazendo, de certa forma até hoje não sei. o acordo foi tácito. o amor não tinha nome. era realidade, e depois dormiríamos. era sem espera, era chão, era acima de uma cidade sem cor e sem alma. era único, e ao mesmo tempo outro. não me pergunte… hoje é concreto. hoje não sei… hoje esperamos. mas acredite que tudo isto é ficção; a realidade não possui este fundo branco. a realidade não… e tu que és mais bela que uma semente de girassol no bico do papagaio deslumbrante desta porta… uma mácula desnecessária no silêncio e no nada… está vendo como tudo é plágio? você não é infeliz? como saber… nascemos todos loucos… alguns continuam, mas e os outros? o que acontece com os outros? hein? vão procurando alguma coisa para dar a impressão de que existem, no difícil parto, do útero para o túmulo. o coveiro ajuda, lento, com o fórceps. Dá o tempo justo de envelhecer, e o ar fica repleto de gritos. você me entende?

?

(contrabaixo)  sol……..ré…………sol…………ré bemol……………………………………………..

eu queria chorar, mas não consigo. não por falta de tristeza, mas talvez por medo de não me lembrar por onde escorre o pranto. eu queria dizer, mas falta sentido. a incoerência das coisas não me deixa terminar uma frase. eu queria te amar, mas……….. a incerteza, a insanidade, a incapacidade, a impotência, o incognoscível…. tudo é incognoscível, incompleto, imperfeito, e não sei porque inventaram tanto adjetivo, e tanto nome, tanto verbo, por que foram inventar a palavra, se nada é palpável, se nada é provável… o ininteligível é que me interessa. se pudesse, permaneceria ininteligível para sempre. eu queria olhar nos olhos das pessoas com a certeza de ver alguém… eu queria ter a certeza da morte que todos têm. mas meu maior medo é não morrer. pois se agora mesmo há tão pouco do que chamam de vida, é possível que a morte seja mesmo uma utopia. eu queria acreditar, mas não posso. e não me pergunte por que. por favor, não me pergunte por que…

poema fichamento

UNESP – Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara

CARLVS MARQVES

 

 

Eu vos invoco a vós que criastes a terra e os ossos e toda carne e todo espírito, que estabelecestes o mar e sacudistes os céus, que dividistes a luz das trevas, a grande mente reguladora, que dispusestes todas as coisas, olho do mundo, espírito dos espíritos, deus dos deuses, ó senhor dos espíritos, senhor de espíritos, ó imóvel Aeon, Iaoouei, ouvi minha voz.

 

Eu vos chamo, ó regulador dos deuses, Zeus de alto trovão, Zeus, rei, Adonai, Senhor, Iaoouee. Eu sou aquele que vos invoca na língua síria, ó grande deus, Zaalaer, Iphphou, não desprezeis meu apelo hebreu, Ablanthanalb, Abrasiloa.

 

Pois eu sou Silthakhoohk, Lailam, Blasaloth, Iao, Ieo, Nebouth, Sabiothar, Both, Arbathiao, Iaoth, Sabaoth, Patoure, Zagoure, Baroukh Adonai, Eloai, Iabraam, Barbarauo, Nau, Siph.

 

 

 

Um minuto.

 

 

 

O medo da necessidade é a própria necessidade, e o medo da sede é a própria sede. É a própria sede. A palavra mágica, o nome, akasa.

 

Ela rasteja por entre as folhas de relva, invisível, sensual, em direção ao som do vento que atravessa os bambus, e passando pelos furos assobia, ao canto do zambelê, em busca de um sono, de um sonho, ela sonha com o rato, e se lembra do passado verde das tribos turanianas.

 

Um círculo de fogo, ela rasteja por sete milhas terrestres, e todos viviam sem juíz, sem dano, ameaços terríveis não se liam, culto à fé, e à justiça então se dava, sem nenhum vingador, sem lei nenhuma, pois o amor é a lei, amor sob vontade, de clima mais que o seu ninguém sabia, para que a terra não fosse desigual em parte alguma, entre ferros cantei.

 

Naquela noite, entre um gole, um golpe, de olhos fechados, de sorte, frente à morte, não terminou ali. Os lábios dela na luz vermelha da viatura. Teus lábios nos dedos meus, mas eu pensei que não era ela… se pareciam muito e alguma coisa não fazia o sentido, o sentido faltava em alguma parte, em tudo, faltava uma voz. As cores da sua realidade nunca mais serão as mesmas em uma sociedade que sonhava em preto e branco e hoje vive em cinzas, hoje sonha colorido e vive num gemido, num gozo sofrido, exprimido, comprimido, oprimido e apertado e gradeado. Os lábios da serpente não dão beijos. A boca escuta em silêncio. Não se curam os medos. Quase todos os desejos do pobre são punidos com a prisão. Primeiro, para que elas servem, as palavras, quando a gente não sabe o que quer? Para ficar brigando e mais nada. Temos que escutar no fundo de todas as músicas o ar sem notas, feito para nós, o ar da Morte. Não queria mais morrer, nunca mais. Era evidente. Não acreditava mais na própria morte. Em suma, a morte é um pouco tal qual um casamento. Essa morte aí não o agradava de jeito nenhum, só isso. Que se há de fazer! Depois de um suspiro:

 

 

paradigma inspirador (quase) moderno pretensioso e formalista

 

Inspire,

expire

pire

fire.

 

E ali,

junto ao fogo,

ao abrigo da velha casa,

onde caem as estrelas,

com as chamas,

a brilhar…

Suavemente,

em minha alma,

germina

e se enraíza,

cresce,

uma chama,

tua língua.

 

PS: Quer-me parecer que o princípio da interdisciplinaridade sugere muito mais o comportamento democrático do que qualquer outro. O dogmatismo científico, ao contrário, relacionado que está com certas concepções da verdade e da certeza, está, evidentemente, muito mais próximo do autoritarismo e do totalitarismo.

 

Bbliografia:

 

Idries Shah, Som Imaginário (1971), Walt Whitman, Jim Morrison, Ovídio, Aleister Crawley, Bocage, Céline, Susy Delgado, Antonio Muniz de Rezende.

história

tudo começou naquele dia, o dia primeiro, o bigbang, antes era o nada, não tinha espaço nem tempo, depois soltaram o verbo. e Deus era um policial, militar, de alta patente. sobre as mãos de suas crianças, ele depositou o futuro. quanto pesava não se sabe, mas Deus não queria mais o futuro. se foi viver no passado ou no presente também não se sabe, mas dizem ser omni, do latim todo, toda, de toda a espécie, qualquer, cada, no neutro singular todas as coisas, tudo, no masculino plural todas as pessoas, toda gente, todos, omnipresente em todos os lugares, e ao lado deles, logo à esquerda. Deus deu oportunidades, que vinham junto com o futuro, mas proibiu uma planta, do reino das plantas, de alimentar suas crianças. o futuro. nós olhamos bem um para a cara do outro. aí tem. e depois de andar muito de bicicleta, resolvemos passar perto da planta que não se podia usar de alimento. aparentemente nada de mais. era realmente um exemplar do reino das plantas. era realmente, e nos chegamos mais perto, tocando a planta, cheirando a planta, sem saber. um dia o João tomou coragem e comeu a planta sem ninguém ver. nem Deus que estava ali do lado, em todo lugar, não viu, ou se viu não disse nada. daí o João veio contar pra gente que era a melhor planta e que Deus queria guardar só pra ELE, e por isso não deixava a gente usar de alimento. não tinha muita coisa pra fazer, além de cuidar do mundo, do jeito que estava, era só cuidar bem, olhar direito, não deixar nada de ruim acontecer. um dia a gente foi todo mundo, pra ver se dava coragem de usar de alimento a planta que não podia, com muito medo. a gente conversa com ELE, disse Alice, ELE vai entender. e todo mundo gostou. todo mundo gostou muito. foi muito bom. nem sei bem como explicar, mas logo Deus sentiu o cheiro da merda, e veio de onde estava num piscar e ficou olhando feio. a gente não tava fazendo nada de errado, mas Deus ficou muito triste. olha meus filhos, quanta gente queria ter o futuro nas mãos, e eu dei pra vocês, eu dei pra vocês pra vocês cuidarem dele e é isso que vocês fazem? como vocês podem ser tão inteligentes e tão burros, que perigo, meu Deus. Deus ficou muito triste, e me vestiu primeiro com uma fantasia, depois os outros. mas eu não sou palhaço nem quero morrer. enquanto a gente tava indo embora, pra piorar, começou a chover.

humanidade

em seu sentido mais amplo

genialidade

Os ocidentais

como crianças de quatro anos

que chamam o princípio do universo

“grande bang”

Inacreditável

A complexa linguagem

que nos distingue dos nossos irmãos

primatas,

pombos,

ratos,

porcos,

cães,

gatos,

plantas,

seres unicelulares,

minerais.

A arte.

com que intuito?

Com que objetivo?

Abstração.

A literatura.

Arte de distribuir letras pelo papel,

geralmente representando sons,

talvez ideias e conceitos.

Alguns aboliram a letra da literatura,

mas de que adiantou?

O frio e o calor.

A fome,

o sexo e o amor.

A culinária.

A gastronomia.

A música.

uma sinfonia

O pensamento,

a felicidade,

a depressão,

a doença,

o crime.

Morte,

estupro,

fogo,

corrupção,

vida,

sentimento,

psicologia,

eu,

você,

todo o resto,

coisas,

pessoas,

animais,

a necessidade

muita

os recursos,

a propriedade,

os poucos

donos

as armas,

a mudança e a repetição,

a fluidez e a pausa,

o silêncio

se um dia houve

em algum lugar

um minuto,

a eternidade,

o começo,

a humanidade,

e seu fim

sem finalidade,

desde o começo

até agora,

aqui,

de novo,

entre eu

e você,

pra que?

por que?

que?

mais alto!

rápido!

rápido!

eu

também

não sei

barulhos

O que eles falavam na cozinha

        ou no alpendre do sobrado

        (na Rua do Sol)

        saía pelas janelas

        se ouvia nos quartos de baixo

na casa vizinha, nos fundos da Movelaria

        (e vá alguém saber

        quanta coisa se fala numa cidade

        quantas vozes

        resvalam por esse intrincado labirinto

        de paredes e quartos e saguões,

        de banheiros, de pátios, de quintais

        vozes

        entre muros e plantas,

                                         risos,

        que duram um segundo e se apagam). (GULLAR, 2001, p. 89)

 

 

O que eles falavam na cozinha

eram simples e unicamente barulhos

ruídos sonoros que se repetiam ao longo dos séculos

um zumbido que a humanidade produz

como abelhas numa colmeia

uma praça pública

shopping center

ou assembleia

em qualquer lugar do mundo

e tente se aproximar

para entender o que elas dizem

nada de novo

tudo do mesmo

imagens

abstratas

e uma ou outra concretude aleatória

o néctar

a flor

a pera

o cavalo

o gato

o galo

teu

u

dezilusões

não acredite no que eles te dizem,
honey,
vá e veja com os dois únicos olhos que podem ver,
sinta com a pele que habita,
cheire, pois um dia se lembrará,
suje suas mãos na lama do mundo,
e mergulhe fundo,
depois,
saia com a cabeça cheia
e grite o mais alto que puder
que tudo é mesmo lama
onde muitos se afogam,
e todos cavam seu próprio buraco
o abismo com seus próprios pés,
mas você
ainda
pode
sonhar,
ser,
trans-
formar.

A origem do universo

Viajo ao centro da terra,

aos ancestrais semelhantes meus,

e à origem antiga de semelhante universo,

primitivo Caos, que também se assemelha

à paisagem que minha janela espelha

no horário de pico

da antiga cidade moderna.

Medo e culpa a bordo da Kombi vermelho piscante

Náusea, palpitações, eu ia de cá pra lá e de lá pra cá, cambaleando dentro da Kombi modernizada que abrigava os aparelhos necessários à manutenção imediata da vida. Caramba, manutenção imediata da vida. Tensão. Nada de pânico ou delírio. Apenas tensão, aquele músculo das costas realmente endureceu. E náusea, a rapidez das curvas.

Um homem baleado. Por que? Essa pergunta ia além do necessário contido na palavra “imediato”. Informações irrelevantes nesse contexto. Eu senti a bala com o dedo e o examinei enquanto a enfermeira furava suas veias com uma agulha da grossura de uma antena de rádio. Poxa vida, andar pelas ruas, ser baleado. A polícia não queria nem saber, ia atrás de quem o baleou para balear eles também, que, por sua vez, iriam balear os policiais logo depois, que baleariam…tudo muito racional, extremamente planejado e com um objetivo certeiro. Deixar tudo como está. Fodido. Um círculo vicioso diriam os acadêmicos.

Medo e culpa. Era isso. Viver é penoso, é muito triste. E não adianta chorar, quando dobrar a esquina, sair do seu quarteirão, ninguém sabe como agir. Não vale a pena chorar, ou mesmo chutar o ar em tom de desespero. Talvez dormir trancafiado em uma cela seja mais seguro.

Eu peguei na mão do meu amigo baleado. Ele tentou fugir e tomou um tiro nas costas. Eu também já fugi tantas vezes na vida, sempre corri, quis que meu brinquedo fosse só meu, afinal, assim tinha aprendido com os doutores do saber mundano. Não te condenaria se você fugisse agora meu amigo, fechasse os olhos e pedisse pra que eu desligasse o oxigênio. Poxa, me deixa ir contigo. To the other side. Se houvesse realmente escolha, se o peso da condenação não fosse tão grande, se existisse o perdão eterno.

Calma, tá tudo certo. Vem comigo, rapaz. Era a minha vez. Meu amigo ficava por lá, ia dar tudo certo com ele. Já comigo…horas batendo a caligrafia na máquina emocional. Peço uma fanta uva na conveniência e tento esboçar um sorriso falso pra garota atrás do balcão – ela vai ter que passar a noite trabalhando, o mínimo que eu posso fazer é esboçar um sorriso falso. – Saio meio de lado, os lábios secos e rachados das noites de sereno na rua. Ela me sorri e eu tento balbuciar um boa noite.

Tensão e náusea. Medo e culpa. Grandes são os caras que conseguem não sentir isso e ir cobrindo as falhas do monstro que governa as metrópoles, os caras que olham pra frente e tentam não pensar muito, e riem à toa de uma careta engraçada, de uma piada suja, e seguem o conselho do mestre, “keep breathing”.

(Marcus Vinícius Marcelini)

A fuga da lula


“A gente pode dar uma volta no quarteirão nessas noites que a TV não satisfaz e a cama tá vazia.” (Saco de Ratos)

I

– Eu tenho um plano.
– Qual?
– A gente sai na sexta e volta antes do natal.
Esse era o plano, sair na sexta e voltar antes do natal, tinha algo a ver com as montanhas, ou perto delas, algo parecido com isso, resgatar o velho espírito mineiro que estava se confundindo com o sentimento da confluência plana, sonsa, flat.
Será que alguém realmente sabe onde está indo? Caminhando sobre os trilhos de um andaime capenga tentando não olhar para baixo. Será? Pegamos a primeira estrada que estava à frente, alguma via expressa com nome estranho de um figurão político.
Talvez ficássemos na casa de um tio. Que tio? Ou talvez no apartamento de um amigo precisando compartilhar problemas e perigos. Na mala, um violão, uma escaleta, a velha barraca e uma garrafa do mais puro melagrião. Pode ser que tudo tivesse resolvido, mas provavelmente era só o começo de uma viagem, uma intuspecção na insanidade da alma de seres humanos como nós, perdidos e extremamente entediados com qualquer tipo de imagem repetida na retina.
– Dá uma volta no quarteirão, meu velho.
Era um quadrado legal, no meio das montanhas, ao lado da metrópole. Tinha um quarteirão por lá, diziam que era por ali que acontecia o amor e, não fosse a segunda volta da montanha, eu juraria que havia mar em algum lugar. Steven estava por lá, Sthendal também, assim como muitos outros que se encontram nas curvas das estradas e esperam a mudança do quarteirão de lugar, mas na verdade era ali mesmo que se encontravam, assim como a mala reluzente e a música que tomava cores pelo ar.
Impressionado com a movimentação eu tentei então dar a volta no quarteirão pra sentir o amor, pra me sentir mais em casa, talvez esse amor (e toda a fumaça) curasse o meu irmão que caminhava logo atrás de mim se contorcendo com as dores de um vírus que tentava coabitar seu corpo. Fraco e doente ele caminhava comigo mostrando a força que têm os soldados do tempo, os herdeiros da estrada.
– Eu estive por lá, Europa, amor. Eu estive por lá agora que a onda quebrou. O Dubstep é uma compilação da geração que toma o rumo das grandes navegações, o Dubstep é a onda que quebra junto com o sentimento das gravações por e-mail.
– Eu estive por aqui. Dormi em baixo de pontes e acompanhei caminhadas, acampei em praças, fui reprimido, comprei fumo de corda dos caras da rua, o Dubstep, o rap, o blues. Tá tudo junto.
Não havia como ser diferente. A reunião aconteceu na beira da estrada já que quem não tem raízes desliza seu caule pegajoso pelo outro lado da rua.
Como muitos outros que chegaram e como muitos outros que partiram, eu acabei também chegando e partindo, caindo em camas de hospitais, correndo pela estrada em busca de medicamentos esquecidos. Tive, afinal, que voltar. Mas a volta nada mais é do que um preparo para a nova partida. Creio que nessa carta desesperada já esteja submersa na lágrima da chegada o fogo da partida. Assim que recobrarmos nossa consciência, assim que o corpo se recuperar com a trégua merecida, novamente deslizaremos nosso caule pegajoso. Buscamos, de uma forma ou de outra, as águas calmas de um porto, as propriedades cicatrizantes da água do Atlântico para tentar fechar esse buraco que nem eu mesmo sei mais onde se escondeu. Ele se faz sentir toda noite e espero que doa assim como tem mesmo que doer, mas que, como o barco deixa o cais, ele também se vá e não volte mais.

Estúdio do I love Bubble.

II

Quando eu voltei, enfim, lá estava ela a me esperar. Não que necessariamente já nos conhecêssemos, mas de alguma forma os lábios tomaram a cor da noite e disseram o meu nome enquanto eu tentava colocar um blues pra tocar na rádio da TV a cabo.
Ana Tula bebia vodka, eu bebia água. Era difícil acreditar, mas o teatro faz dessas coisas com as pessoas. Eu pensei mesmo por um tempo que realmente era o teatro, depois comecei a pensar que pudesse ser o sexo ou a noite que sempre atravessava levando um pedaço meu. Era isso que eu precisava cicatrizar com a água do mar, os pedaços que a noite me arrancava ao atravessar sem trégua um quarto de motel.
Eu sabia muito bem que ela queria e tentava evitá-la, até que se tornou quase impossível, em algum ponto, que suas pernas cruzassem o salão despercebidas. Quando dei por mim aquelas pernas já se misturavam às minhas e tudo o que eu pensava era levá-la ao banheiro para que a privacidade se entrelaçasse à embriaguez e então pudéssemos nos encontrar. Apesar de sempre desencontrado nos telhados alheios, eram pernas sensacionais.
O banheiro foi um erro. Quase sempre é. O carro é uma escolha plausível, mas pode haver engano demais e o físico não conseguir conter a barreira do espaço. Dado que tentamos ambos e a combustão dos corpos estreitava o vazio que havia entre nós, procuramos uma cama escondida em algum canto das ruelas da cidade mineira. Quando antes eu disse que voltara pra casa, eu quis dizer que voltava para o velho terreno que fui criado oscilando entre minha real casa e todos os arredores do que considero familiar. Sim, o banheiro foi um erro.
Adormecemos em uma cama. Lençóis brancos desvirginaram a pureza. Não, aqueles lençóis brancos nada tinham de pureza. Muito menos ela. Só havia pureza no frio que entrava pela janela (o frio que sempre entra pela janela) e no sol que nascia enquanto eu voltava para casa. Sim, eu voltava para casa sozinho, o sol se levantando na linha montanhosa do horizonte. Havia dormido pouco, mas a possibilidade de um café quente e um disco do Muddy me fariam agüentar mais algumas horas até chegar lá. Dirigindo e escrevendo eu tateava curvas da estrada em busca daquele lugarzinho que George nos prometera. É claro, Fred Sun Walk estatelava sua guitarra no porta luvas do carro, tente entender, tudo ficaria mais simples se eu chegasse mais rápido por lá ou até se conseguisse não me perder em uma das curvas no caminho, mas acontece que nada é tão simples.

III

É difícil falar assim sobre lulas e obviamente também é difícil falar sobre as mulheres. O que acontece é que Ana não era de toda má, o grande problema era não saber sobre a fuga da lula e todas as implicações anatômicas e filosóficas disso e, de qualquer maneira, sobre a metade que eu mais gostava da minha pinta, arrancada num só golpe. Ela não sabia nada sobre isso, nem sobre os segredos que guardam as escadas das igrejas pela madrugada com garrafas vazias e violões quebrados. O que faltava pra ela e pra muitas outras é essa sabedoria estranha que guardam as curvas das estradas e os cantos das folhas cortadas nas trilhas das praias que na verdade são as mesmas trilhas incas de Machu Picchu que ligam o Peru a São Tomé das Letras. Dessas trilhas que fazem a cabeça de três amigos com uma mochila e um amor estranho pela estrada. Essa fuga que ela nunca entendeu muito bem. Fuga que não é, na verdade, a mesma que a fuga da lula, mas ambas podem ter uma grande semelhança empírica quando bem feitas.
– Pra que essa mochila, tá indo embora?
– To saindo fora, baby, to chutando a bola.
Pensei no ponto alto da nossa relação e nas piores noites em que a carreguei, bêbada, subindo a escada. Tudo era muito difícil e era inevitável que fosse assim, não existem escolhas. O amor me pegava de surpresa, eu nem tinha acabado com a bebida no copo, às vezes no meio de uma refeição ele vinha e acabava com as minhas noites de sono bom. Fechando a porta atrás de mim, deixei ela e suas calcinhas, o vento frio entrando pelas frestas da janela.
Nunca soube dançar e, talvez por isso, caí em um forró com Stivie Ray Voughan tocando guitarra. Era ali que os nativos daquela ilha estranha se encontravam para tomar misturas afrodisíacas e baforar latas de loló. Sem saber muito o que fazer, encostei no balcão. Um balcão pode salvar muitas noites de um homem, um balcão pode estragar muitas noites de um homem.
– Vamos dançar. – Disse-me virando os olhos e se misturando às pedras restauradas da rua.
– Eu não sei dançar. Mas se você quiser a gente pode sentar e conversar, não que eu seja bom nisso também.
Meus amigos entraram, eram três, incendiando telhados e bebendo vinho barato. Caímos na noite de forrós e reggaes em esquinas tortas (havia muitas esquinas iguais, barcos e veleiros, qualquer um pode ficar perdido nas esquinas de cidades litorâneas coloniais, ruas iguais as de São Luís do Maranhão ou Paraty, difícil dizer ao certo onde estávamos).
Acordamos numa praia em que não havia como se chegar de carro (disse-me um caroneiro que morava lá há cinco anos). O que nos deixava apenas uma questão, ou havíamos pegado a trilha de três horas no meio da madrugada a pé, ou havíamos chegado de barco, não explicando o fato das mulheres lindas e, é claro (não há como fugir), forró e reggae. Tive a vaga idéia de que atravessamos a madrugada como Neal Cassady contando os trilhos do trem no frio cortante. Nós, ao contrário de Cassady, acordamos. Sempre se corre o risco de acordar e talvez seja esse o risco da imortalidade da alma dos viajantes desencontrados desenhando nas linhas do ar o significado do ser livre.
– Onde foi parar o vinho? Sussurrou um dos meus amigos.
– Vinho?
– É, o vinho.
Será que ele está falando comigo ou com aquele hippie? Eu não havia visto vinho nenhum. Deitei mais uma vez na areia da praia e adormeci, rezando pra que quando eu acordasse algo fizesse algum sentido, pra que eu pudesse entender pra onde ir e, principalmente, pra que eu não precisasse nunca mais voltar pra casa. Mas nem tudo é como a gente pede em orações pra Iemanjá. Acordei com uma dreadlocks me olhando assustada, pupilas dilatadas e respiração intensa.
– O que foi garota?
– Devolve o meu vinho.
– Eu já disse que não tenho nenhum vinho.
Melhor seria se eu desse a ela o vinho e falasse algumas palavras bonitas sobre as estrelas que estavam agora nascendo no horizonte escuro. Mas acontece que eu não tinha nenhum vinho e as estrelas já viraram clichês da madrugada. Só me perguntava onde estariam perdidos os meus amigos, cambaleando pela areia fofa da praia que, poderia ser Maresias não fosse o difícil acesso por carro, diziam que ali era um paraíso hippie. Muitas vezes já ouvi falar em paraísos hippies e nenhum deles realmente me fez a cabeça, mas essa praia parecia algo mais.
Com os meus amigos sumidos tudo o que eu podia fazer era comprar um vinho pra que então, quando me indagassem sobre tal, eu tê-lo em mãos.
– Legal ficou pra trás. – Disse-me Pior, um dos meus amigos que estava perdido.
Se Legal ficou então teríamos que voltar.
O que eu sempre temi foi ter que voltar, mas deixar um grande amigo na mão nunca foi meu forte. Talvez eu já tivesse visto isso acontecer assim que fechei a porta (com apenas meia pinta nas costas) e tentei esquecer ela e suas calcinhas de algodão, mas agora que tudo já havia acontecido era muito difícil dizer se a força do acontecimento estava me remetendo a falsas memórias ou se eu realmente era um visionário e pressenti tudo (o forró, os barcos, os amigos, o escorregão pelas ruas de pedra tombadas do patrimônio histórico, os gringos, os dreadlocks pelo caminho e no final, o paraíso encontrado tendo que ser deixado pela força da camaradagem). Era isso, pra mim não havia mais garotas em praias desertas e paradisíacas, teria que voltar pra casa e uma vez de volta seria muito difícil cair na estrada novamente.
– Não deixe de me dizer sobre isso, sobre as estrelas e os clichês da noite, não deixe de comprar o vinho e me acompanhar no violão. Não.
Como era estranho estar de volta, passando assim dois dias dormindo, dois dias sem sentir o gosto da comida, eu queria voltar, “we have to go back”. Alguém bate na porta. Alguém diz que quer o pior de mim. Eu quero fugir, mas se não sabe fazer, parou, vamos começar de novo.
É difícil falar, assim, sobre lulas e, obviamente, também é difícil falar sobre mulheres. Eu encontrei uma vez uma delas que entendia as indagações filosóficas e também sabia sobre a fuga da lula e suas implicações anatômicas, mas acontece que eu tive que voltar pra casa e comprar arroz, feijão, atum enlatado e também uma comida para os peixes, tive que pagar as contas de água, luz e tentar ligar o rádio naquela velha estação que toca música sinfônica. Eu tive que voltar pra casa e tentar arrumar algum dinheiro, algum dinheiro pra voltar praquela praia que, eu sabia, ainda guardaria todas as garotas com cabelos cacheados e todo o vinho desencontrado em garrafas viajando com mensagens de amor pelas ondas até o outro lado do atlântico. E seria inevitável, como sempre é.

Nossa casa de verão. João e eu, foto tirada pelo Mateus Marcelini.

IV
Se ficasse muito tempo parado o sol faria um furo no meu rosto e a minha cabeça faria um furo no colchão dos dias seguidos dormindo prostrado sobre o lençol já rasgado, eu sabia muito bem disso.
A viagem foi horrível, mas até que foi bom voltar pra Ilhabela. Poxa vida, aquele lugar já havia me dado caldos de perrengues e os mosquitos ainda estavam por lá a importunar-nos. Caí meio que de pára-quedas num blues que na verdade era um rock.
Por favor, não distorçam o nome do blues, de tudo que já destruíram e de tudo que ainda vão destruir, deixem o blues em paz. Porém, de qualquer maneira, havia as estudantes de cinema e as mulheres de cabelos raspados dos lados e a cerveja mais gelada do continente, ou melhor, de toda a ilha.
Algo estava acontecendo e quando percebi parecia ser tarde demais pra ser controlado. Eu estava acordando periodicamente depois do meio dia, talvez pelas noites atravessadas com a lua refletida no mar. Novamente me encontrava sozinho. Decidi então cair na rua. Estendi o dedo e peguei uma carona pela estreita estrada da ilha. Um casal e sua filhinha de sete anos me colocaram pra dentro do carro.
– Olá rapaz.
– Oi, tudo certo? Pode me deixar na praia da Feiticeira?
– Tudo bem. O que você faz por aqui?
– Estou procurando um emprego.
– Ah é! E o que você faz?
– Eu sou escritor.
– Que legal! Olha filha, um escritor. Você tem algum livro publicado?
– Sim, chama-se “Não alimente o monstro cego e capenga”.
– É mesmo, ele fala do que?
– Ele conta a história de um homem que tinha diabetes e por isso ficara meio cego e coxo, ele também bebia muito e acabava xingando as pessoas e arrumando confusão, até que se apaixona por uma prostituta e começa a ver algum sentido na vida, só que um padre que era terrivelmente apaixonado pela prostituta acaba matando os dois e dando um tiro no próprio ouvido.
– Meu deus que horror. Quantos anos você tem?
– Vinte e um.
– E quantos tinha quando escreveu essa história?
– Uns dezoito. Tinha acabado de perder minha namorada e grande parte da inspiração se fora com ela. É aqui que fico, praia da feiticeira.
Bem, eu nunca havia sido muito bom naquilo, jogar conversa fora, e tinha a impressão que dessa vez não havia sido diferente.
A praia da Feiticeira era bem assim, um nada, um belo e gostoso nada. Dei um grande mergulho no mar e olhei pra areia. Ninguém. Era até legal. É claro que eu gostava muito do centro também com os bares e o blues, mas um fim de tarde ali poderia ser muito bom. Sozinho. Voltei caminhando por diversas outras pequenas praias não tão vazias, decidi não tentar a carona, andar a pé poderia me fazer algum bem. Lembrei do meu grande amigo Valder com sua carteira de motorista vencida dando cavalinho de pau nas esquias e de todas as garotas lindas de Belo Horizonte e dos portos e ilhas com garrafas de vinho.
Lembrei dela. Ela que conheci em Guaxupé, no meio dos morros ondulando no céu, ela que pedia cigarro pros travestis e bebia com as putas nas espeluncas baratas, o taco de sinuca, a garrafa de vodka. Poderia ser verdade que algo grande me esperava em algum lugar do futuro se eu voltasse pra casa pegando um bom ônibus. O sol já partia na linha com as ondas tentando nos enganar, refletindo-se oblíquo pela água turva do mar. “Que areia branca”, pensei, deitado ali nada parecia poder me atingir, deitado ali meus olhos se fechavam e eu rezava um terço estranho a Iemanjá pra que só acordasse no verão que vem, ou até no depois dele. Era difícil dizer o que aconteceria em seguida.

(Marcus Vinícius Marcelini)