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Medo e culpa a bordo da Kombi vermelho piscante

Náusea, palpitações, eu ia de cá pra lá e de lá pra cá, cambaleando dentro da Kombi modernizada que abrigava os aparelhos necessários à manutenção imediata da vida. Caramba, manutenção imediata da vida. Tensão. Nada de pânico ou delírio. Apenas tensão, aquele músculo das costas realmente endureceu. E náusea, a rapidez das curvas.

Um homem baleado. Por que? Essa pergunta ia além do necessário contido na palavra “imediato”. Informações irrelevantes nesse contexto. Eu senti a bala com o dedo e o examinei enquanto a enfermeira furava suas veias com uma agulha da grossura de uma antena de rádio. Poxa vida, andar pelas ruas, ser baleado. A polícia não queria nem saber, ia atrás de quem o baleou para balear eles também, que, por sua vez, iriam balear os policiais logo depois, que baleariam…tudo muito racional, extremamente planejado e com um objetivo certeiro. Deixar tudo como está. Fodido. Um círculo vicioso diriam os acadêmicos.

Medo e culpa. Era isso. Viver é penoso, é muito triste. E não adianta chorar, quando dobrar a esquina, sair do seu quarteirão, ninguém sabe como agir. Não vale a pena chorar, ou mesmo chutar o ar em tom de desespero. Talvez dormir trancafiado em uma cela seja mais seguro.

Eu peguei na mão do meu amigo baleado. Ele tentou fugir e tomou um tiro nas costas. Eu também já fugi tantas vezes na vida, sempre corri, quis que meu brinquedo fosse só meu, afinal, assim tinha aprendido com os doutores do saber mundano. Não te condenaria se você fugisse agora meu amigo, fechasse os olhos e pedisse pra que eu desligasse o oxigênio. Poxa, me deixa ir contigo. To the other side. Se houvesse realmente escolha, se o peso da condenação não fosse tão grande, se existisse o perdão eterno.

Calma, tá tudo certo. Vem comigo, rapaz. Era a minha vez. Meu amigo ficava por lá, ia dar tudo certo com ele. Já comigo…horas batendo a caligrafia na máquina emocional. Peço uma fanta uva na conveniência e tento esboçar um sorriso falso pra garota atrás do balcão – ela vai ter que passar a noite trabalhando, o mínimo que eu posso fazer é esboçar um sorriso falso. – Saio meio de lado, os lábios secos e rachados das noites de sereno na rua. Ela me sorri e eu tento balbuciar um boa noite.

Tensão e náusea. Medo e culpa. Grandes são os caras que conseguem não sentir isso e ir cobrindo as falhas do monstro que governa as metrópoles, os caras que olham pra frente e tentam não pensar muito, e riem à toa de uma careta engraçada, de uma piada suja, e seguem o conselho do mestre, “keep breathing”.

(Marcus Vinícius Marcelini)

A fuga da lula


“A gente pode dar uma volta no quarteirão nessas noites que a TV não satisfaz e a cama tá vazia.” (Saco de Ratos)

I

– Eu tenho um plano.
– Qual?
– A gente sai na sexta e volta antes do natal.
Esse era o plano, sair na sexta e voltar antes do natal, tinha algo a ver com as montanhas, ou perto delas, algo parecido com isso, resgatar o velho espírito mineiro que estava se confundindo com o sentimento da confluência plana, sonsa, flat.
Será que alguém realmente sabe onde está indo? Caminhando sobre os trilhos de um andaime capenga tentando não olhar para baixo. Será? Pegamos a primeira estrada que estava à frente, alguma via expressa com nome estranho de um figurão político.
Talvez ficássemos na casa de um tio. Que tio? Ou talvez no apartamento de um amigo precisando compartilhar problemas e perigos. Na mala, um violão, uma escaleta, a velha barraca e uma garrafa do mais puro melagrião. Pode ser que tudo tivesse resolvido, mas provavelmente era só o começo de uma viagem, uma intuspecção na insanidade da alma de seres humanos como nós, perdidos e extremamente entediados com qualquer tipo de imagem repetida na retina.
– Dá uma volta no quarteirão, meu velho.
Era um quadrado legal, no meio das montanhas, ao lado da metrópole. Tinha um quarteirão por lá, diziam que era por ali que acontecia o amor e, não fosse a segunda volta da montanha, eu juraria que havia mar em algum lugar. Steven estava por lá, Sthendal também, assim como muitos outros que se encontram nas curvas das estradas e esperam a mudança do quarteirão de lugar, mas na verdade era ali mesmo que se encontravam, assim como a mala reluzente e a música que tomava cores pelo ar.
Impressionado com a movimentação eu tentei então dar a volta no quarteirão pra sentir o amor, pra me sentir mais em casa, talvez esse amor (e toda a fumaça) curasse o meu irmão que caminhava logo atrás de mim se contorcendo com as dores de um vírus que tentava coabitar seu corpo. Fraco e doente ele caminhava comigo mostrando a força que têm os soldados do tempo, os herdeiros da estrada.
– Eu estive por lá, Europa, amor. Eu estive por lá agora que a onda quebrou. O Dubstep é uma compilação da geração que toma o rumo das grandes navegações, o Dubstep é a onda que quebra junto com o sentimento das gravações por e-mail.
– Eu estive por aqui. Dormi em baixo de pontes e acompanhei caminhadas, acampei em praças, fui reprimido, comprei fumo de corda dos caras da rua, o Dubstep, o rap, o blues. Tá tudo junto.
Não havia como ser diferente. A reunião aconteceu na beira da estrada já que quem não tem raízes desliza seu caule pegajoso pelo outro lado da rua.
Como muitos outros que chegaram e como muitos outros que partiram, eu acabei também chegando e partindo, caindo em camas de hospitais, correndo pela estrada em busca de medicamentos esquecidos. Tive, afinal, que voltar. Mas a volta nada mais é do que um preparo para a nova partida. Creio que nessa carta desesperada já esteja submersa na lágrima da chegada o fogo da partida. Assim que recobrarmos nossa consciência, assim que o corpo se recuperar com a trégua merecida, novamente deslizaremos nosso caule pegajoso. Buscamos, de uma forma ou de outra, as águas calmas de um porto, as propriedades cicatrizantes da água do Atlântico para tentar fechar esse buraco que nem eu mesmo sei mais onde se escondeu. Ele se faz sentir toda noite e espero que doa assim como tem mesmo que doer, mas que, como o barco deixa o cais, ele também se vá e não volte mais.

Estúdio do I love Bubble.

II

Quando eu voltei, enfim, lá estava ela a me esperar. Não que necessariamente já nos conhecêssemos, mas de alguma forma os lábios tomaram a cor da noite e disseram o meu nome enquanto eu tentava colocar um blues pra tocar na rádio da TV a cabo.
Ana Tula bebia vodka, eu bebia água. Era difícil acreditar, mas o teatro faz dessas coisas com as pessoas. Eu pensei mesmo por um tempo que realmente era o teatro, depois comecei a pensar que pudesse ser o sexo ou a noite que sempre atravessava levando um pedaço meu. Era isso que eu precisava cicatrizar com a água do mar, os pedaços que a noite me arrancava ao atravessar sem trégua um quarto de motel.
Eu sabia muito bem que ela queria e tentava evitá-la, até que se tornou quase impossível, em algum ponto, que suas pernas cruzassem o salão despercebidas. Quando dei por mim aquelas pernas já se misturavam às minhas e tudo o que eu pensava era levá-la ao banheiro para que a privacidade se entrelaçasse à embriaguez e então pudéssemos nos encontrar. Apesar de sempre desencontrado nos telhados alheios, eram pernas sensacionais.
O banheiro foi um erro. Quase sempre é. O carro é uma escolha plausível, mas pode haver engano demais e o físico não conseguir conter a barreira do espaço. Dado que tentamos ambos e a combustão dos corpos estreitava o vazio que havia entre nós, procuramos uma cama escondida em algum canto das ruelas da cidade mineira. Quando antes eu disse que voltara pra casa, eu quis dizer que voltava para o velho terreno que fui criado oscilando entre minha real casa e todos os arredores do que considero familiar. Sim, o banheiro foi um erro.
Adormecemos em uma cama. Lençóis brancos desvirginaram a pureza. Não, aqueles lençóis brancos nada tinham de pureza. Muito menos ela. Só havia pureza no frio que entrava pela janela (o frio que sempre entra pela janela) e no sol que nascia enquanto eu voltava para casa. Sim, eu voltava para casa sozinho, o sol se levantando na linha montanhosa do horizonte. Havia dormido pouco, mas a possibilidade de um café quente e um disco do Muddy me fariam agüentar mais algumas horas até chegar lá. Dirigindo e escrevendo eu tateava curvas da estrada em busca daquele lugarzinho que George nos prometera. É claro, Fred Sun Walk estatelava sua guitarra no porta luvas do carro, tente entender, tudo ficaria mais simples se eu chegasse mais rápido por lá ou até se conseguisse não me perder em uma das curvas no caminho, mas acontece que nada é tão simples.

III

É difícil falar assim sobre lulas e obviamente também é difícil falar sobre as mulheres. O que acontece é que Ana não era de toda má, o grande problema era não saber sobre a fuga da lula e todas as implicações anatômicas e filosóficas disso e, de qualquer maneira, sobre a metade que eu mais gostava da minha pinta, arrancada num só golpe. Ela não sabia nada sobre isso, nem sobre os segredos que guardam as escadas das igrejas pela madrugada com garrafas vazias e violões quebrados. O que faltava pra ela e pra muitas outras é essa sabedoria estranha que guardam as curvas das estradas e os cantos das folhas cortadas nas trilhas das praias que na verdade são as mesmas trilhas incas de Machu Picchu que ligam o Peru a São Tomé das Letras. Dessas trilhas que fazem a cabeça de três amigos com uma mochila e um amor estranho pela estrada. Essa fuga que ela nunca entendeu muito bem. Fuga que não é, na verdade, a mesma que a fuga da lula, mas ambas podem ter uma grande semelhança empírica quando bem feitas.
– Pra que essa mochila, tá indo embora?
– To saindo fora, baby, to chutando a bola.
Pensei no ponto alto da nossa relação e nas piores noites em que a carreguei, bêbada, subindo a escada. Tudo era muito difícil e era inevitável que fosse assim, não existem escolhas. O amor me pegava de surpresa, eu nem tinha acabado com a bebida no copo, às vezes no meio de uma refeição ele vinha e acabava com as minhas noites de sono bom. Fechando a porta atrás de mim, deixei ela e suas calcinhas, o vento frio entrando pelas frestas da janela.
Nunca soube dançar e, talvez por isso, caí em um forró com Stivie Ray Voughan tocando guitarra. Era ali que os nativos daquela ilha estranha se encontravam para tomar misturas afrodisíacas e baforar latas de loló. Sem saber muito o que fazer, encostei no balcão. Um balcão pode salvar muitas noites de um homem, um balcão pode estragar muitas noites de um homem.
– Vamos dançar. – Disse-me virando os olhos e se misturando às pedras restauradas da rua.
– Eu não sei dançar. Mas se você quiser a gente pode sentar e conversar, não que eu seja bom nisso também.
Meus amigos entraram, eram três, incendiando telhados e bebendo vinho barato. Caímos na noite de forrós e reggaes em esquinas tortas (havia muitas esquinas iguais, barcos e veleiros, qualquer um pode ficar perdido nas esquinas de cidades litorâneas coloniais, ruas iguais as de São Luís do Maranhão ou Paraty, difícil dizer ao certo onde estávamos).
Acordamos numa praia em que não havia como se chegar de carro (disse-me um caroneiro que morava lá há cinco anos). O que nos deixava apenas uma questão, ou havíamos pegado a trilha de três horas no meio da madrugada a pé, ou havíamos chegado de barco, não explicando o fato das mulheres lindas e, é claro (não há como fugir), forró e reggae. Tive a vaga idéia de que atravessamos a madrugada como Neal Cassady contando os trilhos do trem no frio cortante. Nós, ao contrário de Cassady, acordamos. Sempre se corre o risco de acordar e talvez seja esse o risco da imortalidade da alma dos viajantes desencontrados desenhando nas linhas do ar o significado do ser livre.
– Onde foi parar o vinho? Sussurrou um dos meus amigos.
– Vinho?
– É, o vinho.
Será que ele está falando comigo ou com aquele hippie? Eu não havia visto vinho nenhum. Deitei mais uma vez na areia da praia e adormeci, rezando pra que quando eu acordasse algo fizesse algum sentido, pra que eu pudesse entender pra onde ir e, principalmente, pra que eu não precisasse nunca mais voltar pra casa. Mas nem tudo é como a gente pede em orações pra Iemanjá. Acordei com uma dreadlocks me olhando assustada, pupilas dilatadas e respiração intensa.
– O que foi garota?
– Devolve o meu vinho.
– Eu já disse que não tenho nenhum vinho.
Melhor seria se eu desse a ela o vinho e falasse algumas palavras bonitas sobre as estrelas que estavam agora nascendo no horizonte escuro. Mas acontece que eu não tinha nenhum vinho e as estrelas já viraram clichês da madrugada. Só me perguntava onde estariam perdidos os meus amigos, cambaleando pela areia fofa da praia que, poderia ser Maresias não fosse o difícil acesso por carro, diziam que ali era um paraíso hippie. Muitas vezes já ouvi falar em paraísos hippies e nenhum deles realmente me fez a cabeça, mas essa praia parecia algo mais.
Com os meus amigos sumidos tudo o que eu podia fazer era comprar um vinho pra que então, quando me indagassem sobre tal, eu tê-lo em mãos.
– Legal ficou pra trás. – Disse-me Pior, um dos meus amigos que estava perdido.
Se Legal ficou então teríamos que voltar.
O que eu sempre temi foi ter que voltar, mas deixar um grande amigo na mão nunca foi meu forte. Talvez eu já tivesse visto isso acontecer assim que fechei a porta (com apenas meia pinta nas costas) e tentei esquecer ela e suas calcinhas de algodão, mas agora que tudo já havia acontecido era muito difícil dizer se a força do acontecimento estava me remetendo a falsas memórias ou se eu realmente era um visionário e pressenti tudo (o forró, os barcos, os amigos, o escorregão pelas ruas de pedra tombadas do patrimônio histórico, os gringos, os dreadlocks pelo caminho e no final, o paraíso encontrado tendo que ser deixado pela força da camaradagem). Era isso, pra mim não havia mais garotas em praias desertas e paradisíacas, teria que voltar pra casa e uma vez de volta seria muito difícil cair na estrada novamente.
– Não deixe de me dizer sobre isso, sobre as estrelas e os clichês da noite, não deixe de comprar o vinho e me acompanhar no violão. Não.
Como era estranho estar de volta, passando assim dois dias dormindo, dois dias sem sentir o gosto da comida, eu queria voltar, “we have to go back”. Alguém bate na porta. Alguém diz que quer o pior de mim. Eu quero fugir, mas se não sabe fazer, parou, vamos começar de novo.
É difícil falar, assim, sobre lulas e, obviamente, também é difícil falar sobre mulheres. Eu encontrei uma vez uma delas que entendia as indagações filosóficas e também sabia sobre a fuga da lula e suas implicações anatômicas, mas acontece que eu tive que voltar pra casa e comprar arroz, feijão, atum enlatado e também uma comida para os peixes, tive que pagar as contas de água, luz e tentar ligar o rádio naquela velha estação que toca música sinfônica. Eu tive que voltar pra casa e tentar arrumar algum dinheiro, algum dinheiro pra voltar praquela praia que, eu sabia, ainda guardaria todas as garotas com cabelos cacheados e todo o vinho desencontrado em garrafas viajando com mensagens de amor pelas ondas até o outro lado do atlântico. E seria inevitável, como sempre é.

Nossa casa de verão. João e eu, foto tirada pelo Mateus Marcelini.

IV
Se ficasse muito tempo parado o sol faria um furo no meu rosto e a minha cabeça faria um furo no colchão dos dias seguidos dormindo prostrado sobre o lençol já rasgado, eu sabia muito bem disso.
A viagem foi horrível, mas até que foi bom voltar pra Ilhabela. Poxa vida, aquele lugar já havia me dado caldos de perrengues e os mosquitos ainda estavam por lá a importunar-nos. Caí meio que de pára-quedas num blues que na verdade era um rock.
Por favor, não distorçam o nome do blues, de tudo que já destruíram e de tudo que ainda vão destruir, deixem o blues em paz. Porém, de qualquer maneira, havia as estudantes de cinema e as mulheres de cabelos raspados dos lados e a cerveja mais gelada do continente, ou melhor, de toda a ilha.
Algo estava acontecendo e quando percebi parecia ser tarde demais pra ser controlado. Eu estava acordando periodicamente depois do meio dia, talvez pelas noites atravessadas com a lua refletida no mar. Novamente me encontrava sozinho. Decidi então cair na rua. Estendi o dedo e peguei uma carona pela estreita estrada da ilha. Um casal e sua filhinha de sete anos me colocaram pra dentro do carro.
– Olá rapaz.
– Oi, tudo certo? Pode me deixar na praia da Feiticeira?
– Tudo bem. O que você faz por aqui?
– Estou procurando um emprego.
– Ah é! E o que você faz?
– Eu sou escritor.
– Que legal! Olha filha, um escritor. Você tem algum livro publicado?
– Sim, chama-se “Não alimente o monstro cego e capenga”.
– É mesmo, ele fala do que?
– Ele conta a história de um homem que tinha diabetes e por isso ficara meio cego e coxo, ele também bebia muito e acabava xingando as pessoas e arrumando confusão, até que se apaixona por uma prostituta e começa a ver algum sentido na vida, só que um padre que era terrivelmente apaixonado pela prostituta acaba matando os dois e dando um tiro no próprio ouvido.
– Meu deus que horror. Quantos anos você tem?
– Vinte e um.
– E quantos tinha quando escreveu essa história?
– Uns dezoito. Tinha acabado de perder minha namorada e grande parte da inspiração se fora com ela. É aqui que fico, praia da feiticeira.
Bem, eu nunca havia sido muito bom naquilo, jogar conversa fora, e tinha a impressão que dessa vez não havia sido diferente.
A praia da Feiticeira era bem assim, um nada, um belo e gostoso nada. Dei um grande mergulho no mar e olhei pra areia. Ninguém. Era até legal. É claro que eu gostava muito do centro também com os bares e o blues, mas um fim de tarde ali poderia ser muito bom. Sozinho. Voltei caminhando por diversas outras pequenas praias não tão vazias, decidi não tentar a carona, andar a pé poderia me fazer algum bem. Lembrei do meu grande amigo Valder com sua carteira de motorista vencida dando cavalinho de pau nas esquias e de todas as garotas lindas de Belo Horizonte e dos portos e ilhas com garrafas de vinho.
Lembrei dela. Ela que conheci em Guaxupé, no meio dos morros ondulando no céu, ela que pedia cigarro pros travestis e bebia com as putas nas espeluncas baratas, o taco de sinuca, a garrafa de vodka. Poderia ser verdade que algo grande me esperava em algum lugar do futuro se eu voltasse pra casa pegando um bom ônibus. O sol já partia na linha com as ondas tentando nos enganar, refletindo-se oblíquo pela água turva do mar. “Que areia branca”, pensei, deitado ali nada parecia poder me atingir, deitado ali meus olhos se fechavam e eu rezava um terço estranho a Iemanjá pra que só acordasse no verão que vem, ou até no depois dele. Era difícil dizer o que aconteceria em seguida.

(Marcus Vinícius Marcelini)

Último trago

Fixe-se no transe, no trespassar da matéria, quando você perceber ela já passou, quando passar traga algumas Budweiser’s com você, traga o Afonso, o Pessa, o Dú e alguma daquelas garotas que tanto apreciamos (perdidas em cantos municipais). Melhor, nem passe aqui, passo livre, mundo. Me livre no quebrar de uma noite mais ou menos, diga que o bar tá aberto, a sinuca tá livre e a zona é perto.

Fixe-se em não se fixar muito, é só mais uma brincadeira, um jogo do cosmos, um efeito passageiro de alguma coisa que jogaram na bebida, nada muito forte. Um DJ discoteando num cofee shop meio desabitado, uma quebrada meio estranha, som novo, é lounge? sempre é lounge.

Transcender sem mochilas, bagagem sempre foi bobagem, – bagagem é extracorpórea – me disse um ateu dia desses, ateus em transes budistas, viagens reveladoras da inexistência de algo mais.

Cruzei a copa das árvores, por vezes acelerei, mas sempre na calma. Se for acelerar mantenha-se no reggae (é aí que mora o segredo) e se for bater de leve prefira um blues e um Hoffman, nada de duplas faces, porrada na cara tem que ser no silêncio, escândalos são para os contentes, cuidei das transições bruscas, dos dias acordando sob teias, as teias sob o efeito. Acionistas da bolsa encontram o êxtase místico do tarô, inferno astrológico, Carl Sagan quiromântico, Madame Minn lecionando a teoria das supercordas, alguém puxa fundo para a árvore brônquica o que da árvore-terra saiu, árvore-mãe, pessoas falam sempre sobre as minhas outras garotas, os amigos riscam fósforos, acendem isqueiros, Prometeu andando às cegas pelas minhas faculdades mentais, experiências sensoriais, cores saborosas.

Não leve bagagens, não cometa o erro. Foucault dissecando cadavéricos sociopatas, meu prazer alexandrinesco, magno, incrustações genéticas, bloqueio evolucionário, alocações, de que me vale perder uma cauda e ganhar a ganância, crise de sinônimos evolução-extinção. Bagagens são um erro, bagagem genética, não cometa o erro. Promiscuidade neuronal, isso sim é evolução, Darwin nadando crau, nu, em lagos virgens, ilhas virgens do pacífico, praias virgens do pacífico, virgens virgens do pacífico. Venéreo. Escorbuto tomando conta da tripulação, é a praga, Darwin não matou Deus, por favor advertam-No, ex-virgens sifilíticas do pacífico.

Camões naufragado, trazendo “Os Lusíadas” debaixo do braço, 455 anos, one houndred years, boemia aqui me tens de regresso, advertam-No, não O matamos, nós O amamos.

Ela lança um grito de desespero e me olha no umbigo, bem no fundo do umbigo, essa pinta sempre esteve aí?

Diga a ela que não posso – amor, tente – não posso, bagagens são um erro, eu não faço a redondilha, perdi o amor à glória lusitana, don´t try, textos são confusos, não escreva poesia.

(Marcus Vinícius Marcelini)

'Hell' - Hieronymus Bosh

'Hell' - Hieronymus Bosh

 Seguindo o conselho do  Bernardo Biagioni estou experimentando a horizontalização dos versos, esse em particular foi composto ouvindo ao vivo o line do iLove Bubble numa dessas terças tortas por aí.

Barney

Ontem eu andei pensando e cheguei à conclusão de que a destruição da biblioteca de Alexandria provavelmente foi a responsável pelo atraso e pelo encavalamento do conhecimento humano ocidental. É um pensamento bastante reducionista, claro. Talvez tenha sido o fato disso representar a seqüência de guerras e destruição do conhecimento gerado por um sentimento de auto-destruição que existe na raça humana. Eu pensei nisso no sofá de casa. Nem sei muito porque pensar nisso. Talvez porque a obtenção do meu conhecimento dependeu do ressurgimento das idéias destruídas na biblioteca de Alexandria e em tantas outras bibliotecas destruídas pela mesma espécie que as construíram. Auto-destruição. Não que eu tenha muito conhecimento ou auto-conhecimento. É válido aquilo que eu posso usar. Talvez o povo do Egito não estava usando muito o conhecimento, assim ele acabou fenecendo. Assim como o que fica guardado por muito tempo acaba perdido, destruído por entre as conexões sinápticas, o desfazer da junção de neurônios e íons e potenciais elétricos e magnéticos, sem falar da metafísica – Se eu pressionar a sua orelha dois milímetros acima da borda do lóbulo direito você pode ter um alívio significativo da dor que te causou a perda do seu hamster, pobre Barney. Se ao menos eu soubesse disso quando eu tinha onze anos de idade. Talvez eu não tivesse passado o dia cavando um buraco na grama do vizinho para colocar a caixa com uma cruz desenhada em que jazia o pobre Barney. Eu só apertaria o ponto na minha orelha, talvez umas quatro ou cinco vezes e iria assistir TV, sem dores, só perceberia quando a gaiola começasse a feder, pobre Barney. Fazia tempo que eu não pensava nele. Igual a mim ele vivia fugindo. Eu sempre o achava depois de uns três dias de sumiço faltando alguns tufos de pelo e quando eu ia pegá-lo pra colocar de volta na gaiola ele grunhia para mim, do jeitinho como eu fazia com o meu pai. Uma vez eu pulei fora de casa, de mochila e tudo, peguei carona e tava decidido a nunca mais voltar. Três dias depois meu pai me achou. Ele olhava pra mim com cara de quem não tava entendendo nada. Ele sempre olhava com cara de quem não tava entendendo nada. Como se tudo tivesse muito bem e eu fosse o problema. Eu ter fugido era o problema. Se eu tivesse ficado em casa tudo estaria muito bem. O Barney nunca ia muito longe, era só fechar a porta e ver se havia algum barulho, de onde viesse o barulho era lá que ele estava, geralmente era dentro de uma caixa de cerveja ou de um balde velho. Eu nunca fui muito bom com o Barney. Uma vez, tinha acabado de recuperá-lo de uma de suas fugas, fechei a porta e fiquei observando. A gaiola ficava em cima do tanque de lavar roupas porque minha mãe não gostava dessas coisas no chão. O animal colocou as patas nas grades da gaiola e se espremeu por entre elas, exalando instinto animal, saiu lá de dentro, deu uma chacoalhada nos pelos e pulou de cima do tanque no chão. Eu também pulei, certa vez. A queda foi o suficiente para matar o pobre Barney, já eu tive tempo de esperar os paramédicos desfrutando do azul do dia estirado no chão. Esse dia meu pai também quis ter um ponto desses de apertar na orelha. Acontece que não tinha.

(Marcus Vinícius Marcelini)

A noite do morcego

“Então um mastin começou
a uivar alhures numa estância rural,
bem longe, abaixo de onde corria
a nossa estrada. Seu uivo era áspero,
longo e lamentoso, como se
estivesse repassado de pavor.”
(Drácula – Bram Stoker)

Observava as estrelas e as constelações, escorpião e a cruz do sul pela noite veloz, estrelas que cruzavam o céu, amigos viajando, luzes piscando, quando um morcego entra pela janela do meu quarto e eu tento fazer contato:

– Boa noite… meu nome é Paulo Marques. – eu disse.

– Boa noite.

O contato entre os homens e os animais era falho na maioria das vezes e ele me encarava como se eu fosse matá-lo, o que eu não tinha intenção de fazer até ele começar a guinchar.

– Calma, não há porque a tensão. Aceita um cigarro? – perguntei oferecendo o maço.

– Fique longe, eu sei suas reais intenções.

Passado um tempo ele parou de guinchar e pegou um cigarro:

– Tem fogo? – perguntou me olhando meio duvidoso.

Passei-lhe o isqueiro. Ele era feio e peludo, características que também já me foram atribuídas. Não me identificava muito com aquela criatura, mas ela tinha lá sua elegância. Olhava de lá para cá e de cá para lá, sem tirar os olhos de mim, de vez em quando abria um pouco as asas e dava uma guinchada breve e aguda.

– Eu não tenho pra onde ir essa noite, vi sua janela aberta e pensei que você podia querer fazer alguma coisa. – me disse meio desdenhoso.

– Você não devia estar chupando sangue por aí?

– Não, eu parei com isso, meu médico disse que estava me fazendo mal, agora eu estou mudando pra uma dieta de baixas calorias, basicamente pólen e artrópodes.

– É… dizem que é bom pro coração. Quer uma cerveja?

– Aceito.

Ficamos ali por horas tomando cervejas e fumando cigarros e falando das mulheres e de como elas acabam com a vida de um homem e ao mesmo tempo como nada fazia sentido sem elas. Morcegos, mulheres… e o relógio se avançava, eu já bocejava quando o morcego e eu, ambos de porre, fomos para um boteco próximo do meu apartamento.

– É proibida a entrada de morcegos. – disse o dono do bar.

– Ele está comigo. – respondi.

O morcego pediu licença e foi ao banheiro mijar um pouco da cerveja que havia tomado. Tomamos mais umas seis cervejas e uma dose de vodka quando de repente ele começou a passar mal e a vomitar. Nada que eu nunca tivesse feito. Ajudei-o e o levei de volta pra minha casa. Joguei o pobre coitado de baixo do chuveiro e dei um banho frio nele pra ver se ele melhorava. Dormiu lá mesmo.

Levei-o, adormecido, para cama e fui me aproximando levemente daquele ser que, cada vez mais, me parecia familiar. Afaguei-o com carinho e aos poucos fui me aproximando daquele pequeno pescoço peludo, minha boca chegando perto, lasquei-lhe uma mordida e comecei a chupar todo o sangue com enorme prazer, e minha boca começou a se encher de sangue, uma coisa vermelha, deliciosa, cada vez mais gostosa, me lambuzando todo até eu secar todo o sangue da infeliz criatura.

Seria o álcool que fizera tal efeito, ou seria eu um hematófago e nunca soubera? A verdade é que certo ou errado aquele sangue me satisfazia, como a droga satisfaz os viciados, como a oração satisfaz os religiosos, como o poder satisfaz os políticos, eu não era tão diferente dos demais humanos, minha satisfação tinha lá suas peculiaridades mas nada que fugisse dos padrões necrófilos e canibalescos que banharam a história da humanidade.

A cama estava vermelha de sangue fresco. Busquei um pano para limpá-la e quando voltei me deparei com algo inesperado, um homem, feio e peludo, deitado de bruços na minha cama, com marcas no pescoço e todo ensangüentado. Um homem familiar. Cheguei mais perto para melhor observar o rosto daquele cidadão, aquele homem, feio e peludo, era eu, Paulo Marques, eu, morto. Se eu jazia ali, naquela cama, então que tegumento duvidoso eu habitava agora? O medo de olhar no espelho era grande de mais, medo de me deparar com algo tão bizarro quanto foi com a minha própria sombra morta na cama, fato que já havia me gelado a espinha.

As indagações eram tantas que resolvi voltar aonde tudo havia começado. Na janela do meu quarto, observando as estrelas e o céu. Aquelas constelações intangíveis que me mostravam o quanto eu era pequeno e insignificante, e que minha poesia e meus amores se volatizavam pela estratosfera e provavelmente nunca seriam descobertas por aquela estrela que eu observava, uma estrela que, provavelmente, assim como eu, estava morta há algum tempo.

Fechei os olhos, pedi desculpas à minha mãe, ao meu pai e à mulher que eu amava, fiz o sinal da cruz beijando os dedos , derramei algumas lágrimas no parapeito da janela e me joguei em um ato suicida, solto no abismo do real, nove andares. Com os olhos fechados senti um farfalhar aos braços mexer em um reflexo gerado pela sensação de morte iminente, eram meus braços asas e eu agora voava pela imensidão da madrugada, perdido entre as estrelas e as constelações e os outros morcegos, que, assim como eu, eram feios e peludos.

O Caminho

O caminho se tornava superficial e ele não sabia como manipular as situações, quando antecipava alguma notícia ela se dissolvia; as palavras bonitas não o agradavam, mas sim o significado colocado em prática. Ele acreditava que havia um vidro e, atrás dele, alguém o observando e anotando todas as atitudes tomadas diante de cada contexto.
Ele estava ali sentado e esperando por alguém que insistia em demorar a chegar, e em sua cabeça ia passando lindas imagens de tudo que ele já havia vivido, e um sorriso se abriu como um leque, eram os sonhos que tomavam conta do seu universo.
O corpo era de homem formado; forte, porém, o coração com a singela inocência de um garoto, ele vivia mudando a opinião das pessoas ao seu respeito quando tomava certas atitudes, e isso o tornava único. Não falava nada que pudesse prejudicar alguém sem motivo, pois também tinha seus medos, vícios e frustrações, mas mantinha seu caminho usando essas coisas como fonte de inspiração.
Porém, mesmo ele querendo fazer tudo se tornar perfeito, havia um vazio dentro de si, que revelava a falta que uma linda mulher fazia, ela havia ido embora e deixado apenas lembranças dos lábios do garoto percorrendo seu corpo. Isso o tornava mais consciente que se o amor que era algo lindo continuava sendo inexplicável, imaginava todo o resto e por isso deixou de buscar a perfeição.
Mudando seu percurso e refletindo sempre sobre os copos de vinho que esgotavam sua visão sóbria, ele queria viver em dia com a paz, e agradecer a paciência que havia ganhado, para ter capacidade de estar ali, sentado, esperando por alguém que insistia em demorar a chegar.
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(Emily Freitas)
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A Emily é amiga do Informarte Blog e escreve no Tiaras de Cristal, pra conferir mais poemas e textos dela é só entrar lá!

Minha Metamorfose

Hoje eu acordei estranho. Como Gregor Samsa. Levantei com aquele sentimento entalado na garganta. Entrei no banheiro, despi-me, liguei o chuveiro e me deixei atacar pela agua quente. Não consegui fechar os olhos. Ao tentar, um arrepio descomunal me subia pelo interior e me eriçava os pêlos. Tentei apenas duas vezes. Ao sair do banho, enxugando-me ainda, aquela ideia incômoda que ameaçava se formar em minha mente se construiu na forma de uma pergunta como uma ave de rapina que surpreende a presa. Será que eu acordei mesmo? Não pude me conter. Antes mesmo de terminar de me enxugar, superando todo o medo e os calafrios, olhei pela porta do banheiro. Lá estava eu, deitado na cama, desfalecido.

Transpirar-se

Trancou-se no banheiro. Ninguém o perturbaria. Ninguém se preocuparia. Sua mente se perdia em pensamentos desconexos. Abriu a válvula do gás especialmente preparado para aquela situação. Com muito clorofórmio para anestesiar a dor da alma. Deitou as costas nuas no chão frio e flexionou os joelhos. Assim, o efeito seria mais rápido. Aquelas palavras se repetiam em uma tautologia inebriante, e, apesar da sonoridade doce e serena, embriagavam em uma dormência asfixiante. “Não dá mais”, foi o conjunto de fonemas suficiente para desencadear um longo processo químico, físico e metafísico. Já podia sentir sua própria pulsação cardíaca no crânio e no peito. Começavam a formigar as extremidades das mãos e dos pés, e o corpo ficava cada vez mais leve, apesar de flácido e inerte. Realmente, não dava mais. Como é que poderia continuar? Era para o bem de todos. Dali a alguns dias, semanas ou meses (quem sabe ano que vem), não o encontrariam ali, naquele corpo deteriorado, olhar distante, calmo; sorriso leve e suave, mãos sobre o abdome. Agora, pontos do teto flutuavam e dançavam de um lado para o outro. As paredes ao redor evanesciam, assim como seu exterior já havia feito horas atrás. O mofo grudado às bolhas de infiltração começava a se organizar para formar uma imagem ainda indefinida. Só havia um momento na lembrança: o momento presente. Os pensamentos confusos já haviam se esvaído, dando lugar às múltiplas sensações que chegavam e bombardeavam o cérebro dos cinco cantos (seis talvez). A sinestesia era completa. Os ruídos exteriores eram vistos rodeando o ambiente branco e esbarravam nos braços e nos joelhos, e possuíam também um odor fétido que se misturava ao do gás já homogêneo. O paladar era doce, resultado de vários gostos, e dormente. Um som agudo como um Si natural desafinado era constante em seus ouvidos, e ao fundo choravam gritos de dor e sofrimento em timbre feminino. A imagem estava formada, olhos profundos, cabelos levemente ondulados, nariz delicado, boca atraente (algo como a ressaca do mar, já conhecida), queixo feito sob medida para seus dedos, bochechas receptivas a beijos carinhosos, et cetera… Esta forma já não era tristeza. Formara-se em paz, sorrindo, toda esquecimento, como o símbolo de um futuro alegre e pacífico, e se aproximava lentamente, como um sonho que se vê concretizar. Assim foi aquela imagem envolta em bruma absorvendo o pensamento, a alma, o espírito daquele corpo cujo coração já não pulsava, vendo que o cérebro já não necessitava do oxigênio por ele enviado. Foram descobrir parte do que havia acontecido quando não veio o aluguel no esperado dia. Telefonaram, mas todos os aparelhos já tinham entrado em inatividade devido à corrosão dos fios pelos gases que se espalharam pela casa toda. Os parentes, não havia. Amigos, esquecidos. Quando os bombeiros foram retirar os restos materiais, precisaram usar máscaras de gás, evacuaram o bairro por um mês até que a toxidade do ambiente fosse suportável pelo organismo humano. Fauna e flora não foram afetadas. Não existiam. Jornais publicaram a notícia, mas, passados alguns meses, não se falava mais nisto, apesar de aquele homem continuar lá, naquele ambiente branco de paz, onde nunca mais entrou alguém.

(A Graciliano Ramos, o angustiado, e a Mário de Sá-Carneiro, o suicida)

O Desabafo Inconsciente

Há três semanas, eu sonhava com um chacal que me atacava, o sonho com chacais, segundo interpretações variadas, sugerem que você redobre suas atenções perante à sociedade e a traições. Não sou supersticioso, mas os dias que seguiram não foram dos melhores. Três semanas depois, na noite de ontem, eu tive outro pesadelo, que foi o resumo de um mês inteiro de desilusões…

– Posso ir? – perguntei a uma árvore do Parque Municipal.

– Está escuro demais, meu filho, logo uma tempestade vai lavar Guaxupé! – Respondeu-me a velha mangueira.

Eu olhei para os lados e tudo ao meu redor estava mergulhado num breu. Levantei a cabeça, abracei minha velha amiga vegetal pela última vez e falei:

– A única coisa que tem que ser lavada dessa cidade sou eu… E se me decepcionei com a sociedade, a culpa é minha e de mais ninguém. Minha imagem foi se desgastando neste mês de julho, pouco a pouco, fui humilhado em todos os aspectos. Eu não tenho mais máscaras para mostrar a ninguém. Tenho minha alma pura e limpa, isenta de mentiras e falsidades e se não por toda a sociedade, sacrificar-me-ei pelos amigos e por amor à minha cidade.

– Mas, meu filho, esta tempestade é um castigo dos deuses! Qualquer um que estiver na avenida pode ser levado.

– Eu não ligo mais para o mundo material. Eu não suporto mais a realidade, o mundo real. O único lugar que procuro e que encontro a felicidade é no mundo que imaginei e este não está em lugar nenhum da Terra senão em mim mesmo… Adeus.

Eu saí do Parque pela última vez, atravessei o gramado, sem nada ver com os olhos, mas fazendo o caminho de sempre com as pernas. Passei pela rotatória e senti a brisa forte que se escorria da língua que descia do bairro Agenor de Lima; dobrei a esquina do Bar do Coelho, atingi a avenida. Ali, uma bola dourada iluminava a praça toda e quando eu cheguei, todos fizeram silêncio.

Eu pude olhar na retina de cada um: as mulheres que já me rejeitaram, as ex-mulheres, as indecisas; os professores que nunca acreditaram em mim, que me desprezaram e que disseram que eu não saberia, na vida, fazer nada; encarei os ‘amigos’ que brigaram comigo por questões fúteis, o colega da sala ao lado que sonhava em ver minha cara de sem-graça se me faltasse a humildade; as colegas da turma que sabem todos os cálculos, todas as fórmulas e nada sabem do coração; todas as pessoas que já me deram um tapa na cara, que me responderam de forma grosseira, sem eu merecer; os familiares que jogavam praga, dizendo que eu deveria ser médico ou promotor para mamar nas tetas sujas de um tal GOVERNO, que eu já não suporto mais a ideia…

Por fim, mirei minha família, meus amigos, meus bons professores, os cães da rua, os bêbados, as crianças puras… E, como meu último alento, dei-lhes as últimas lágrimas de meus olhos… Olhei a bola dourada no céu e gritei:

– Leva-me! Livra-me! Lava-me!

Vi-me no brilho daquela luz, que me embebeu para sempre… A tempestade cessou.

Um Órgão

“Aquele detalhe era algo comum a todos. As pessoas conviviam com ele como se fosse normal, uma simples banalidade. Como podiam não dar importância a algo assim? Todos os meses, minha mãe me fazia ir ao hospital, passar por aquela cirurgia chata, que os médicos faziam como se estivessem a trocar um fio de cabelo. Mas não; era um órgão especial aquele que me tiravam em troca de outro cuja origem me era desconhecida. Era o meu coração.

“Eu sabia que, no mundo, só havia uma pessoa com quem eu realmente desejava trocar meu coração. Parece que ninguém sente que este órgão determina o ritmo, não só da pulsação, mas também o da vida como um todo, da rotina, dos sentimentos, desta noção interna de pessoalidade a que chamamos “eu”. E cada vez que eu via um hospital, eu tinha medo. Tinha medo porque sabia que seria prazeroso. Sabia que teria algo de novo pra contar a todos. As pessoas se interessariam por mim, me perguntariam como havia sido, como eu me sentia, se eu sabia de quem era o coração, e outras questões que só fariam sentido em uma única ocasião. Aquela que eu não encontrava.

“Ao mesmo tempo, era desconfortável. Por dentro eu me sentia incomodado com aquele ritmo diferente, estranho, que batia dentro de mim e me obrigava a segui-lo. Era como ter de se acostumar com outra pessoa vivendo dentro de você, tomando conta do seu corpo, mesmo sabendo que você pode impedir aquilo, mas sofreria as conseqüências. A sociedade isola quem não troca seu coração. São considerados anti-sociais, e muitas vezes estes se separam do resto por opção própria, pois obviamente são de opinião muito distinta da massiva.

“Eu mesmo demorei a perceber que tudo isto não fazia sentido. Aos onze anos, encontrei aquela garota. Logo que olhei em seus olhos, eu soube que sua freqüência original (é assim que chamamos o ritmo cardíaco que temos ao nascer) era idêntica à minha. Isto pode ser observado quando se olha bem fundo nos olhos de uma pessoa e ouve a sua voz. Mesmo que ela esteja com outro coração a bombear sangue por todo seu corpo, seus cílios ainda piscam como quando recebiam o fluido naquela freqüência primordial, seus movimentos ainda mantêm uma velocidade invariável, sua voz possui um timbre peculiar e inalterável, e dentro dos olhos…

“É a mais inexplicável sensação que se pode experimentar. Quando se olha no fundo dos olhos desta pessoa, o coração que está com você no momento, seja ele de quem for, volta a bater do mesmo modo que quando podia chamá-lo de seu. Eu tenho certeza de que isto não acontece somente comigo. Em meios alternativos, a onde somos proibidos de ir, as pessoas falam, ou melhor, sussurram sobre algo a que chamam amor verdadeiro, e os trechos de descrição que eu pude ouvir quando passava sorrateiramente por ali, se assemelhavam muito com o que eu tenho sentido todas as vezes que ela está por perto. Minhas atitudes se tornam diferentes, como se fossem naturais, e ao mesmo tempo forçadas. Minhas mãos tremem de medo, ao mesmo tempo de prazer, e logo depois de uma ansiedade angustiante.

“O que acontece é que este coração, o último que me colocaram, está prestes a explodir, e aumenta sua freqüência a cada instante, porque ele sabe que eu estou me dirigindo a ela, e vou falar. Ele sabe que ela vai me olhar no fundo dos olhos e vai perceber que estou a dizer a verdade, e também sentirá, com certeza. Talvez seja esta a causa dos enfartos. O coração sabe que perderá sua personalidade, e terá que seguir regras que estão acima de sua própria natureza fisiológica, para bater quando lhe disserem para bater. Ele se desespera. Deve ser um coração já velho. Também, como não seria? Já devem fazer quarenta anos que se descobriu a infeliz possibilidade de trocar corações, e desde aqueles tempos, a coisa se popularizou de tal forma que este órgão poderia ter já seus cem anos e não estar disposto a viver grandes emoções. Eu me senti cansado, nauseado, tonto, e só tive forças para proferir as palavras necessárias: eu te amo.”

Quando disse isto, a garota já olhava no fundo de seus olhos há algum tempo e haviam ficado em silêncio durante este instante. Após dizer, o rapaz caiu ao chão. Seu coração já não batia.